Racismo e descaso afetam saúde mental de pessoas negras

Efeitos psicológicos da discriminação racial se estendem a toda a sociedade, dizem especialistas

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São Paulo

"Eu tinha baixa autoestima, mas não compreendia de fato o motivo. Nunca tinha falado sobre esse assunto antes. Então, tudo passava batido. As humilhações na escola, o preterimento social", afirma a pedagoga Ana Paula Evangelista Neris, 34.

A paulistana usava lentes de contato claras e pó compacto para deixar o tom da pele menos escuro, além de alisar e alongar o cabelo na busca por amenizar o sofrimento.

"Com o passar do tempo e a chegada da adolescência, eu já tinha entendido esse processo, mas não chamava de racismo. Eu pensava que tinha algo errado comigo. Dei início ao meu processo de embranquecimento para me sentir 'normal', mas mesmo assim eu não me sentia aceita. Eu comecei com baixa autoestima e passei a sofrer com ansiedade, 'auto-ódio' e uma tristeza profunda. Também me tornei uma pessoa estressada."

A pedagoga Ana Paula Evangelista Neris, 34, em sua casa no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo; Ana Paula é negra, tem os cabelos crespos curtos e sorri na foto, sentada no encosto do seu sofá cinza, tendo ao fundo a cozinha de sua casa, que é aberta para casa; ela usa uma regata justa rosa e um short estampado
A pedagoga Ana Paula Evangelista Neris, 34, em sua casa no Itaim Paulista, zona leste de São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Casos como o de Ana Paula não são exceção numa sociedade moldada pelo racismo estrutural como a brasileira. O preconceito racial produz efeitos negativos na saúde mental e na saúde emocional, e um dos pontos de maior gravidade é o fato de as vítimas nem sempre perceberem a relação entre o sofrimento psicológico e a discriminação.

Embora possa se tornar um gatilho para problemas como ansiedade, depressão e estresse, o tema, porém, não deve ser tratado apenas como uma questão individual, ressaltam especialistas.

"Ser negro em uma sociedade construída sob uma hierarquia étnico-racial nas relações acarreta sofrimentos simbólicos e materiais. No entanto esse sofrimento não se origina no negro. Sua gênese encontra-se na situação social de ser tratado como inferior em um sistema no qual as relações de poder transformam as diferenças em desigualdade", explica o professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) Alessandro de Oliveira dos Santos.

"O comportamento de uma pessoa negra é mais do que a reação ou o efeito do racismo. Cada um tem um conjunto de repertórios próprios que modulam suas estratégias de lidar com os problemas", diz.

Dados do Ministério da Saúde apontam que a taxa de mortalidade por suicídio entre jovens e adolescentes negros é três vezes maior que a de pessoas brancas do mesmo grupo. O índice permaneceu estável de 2012 a 2016 entre pessoas brancas, mas teve aumento de 12% na população negra. Os dados são da cartilha Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros (2018).

"É possível dizer que existe uma relação [com o racismo]. É um reflexo da ausência da nossa atenção enquanto sociedade às políticas públicas de saúde mental da população negra", afirma Ivan de Sousa Araújo, professor de medicina na Universidade de Salvador.

"O racismo já começa na dificuldade de acesso das pessoas negras à saúde em geral, e isso vai se refletir na saúde mental", diz o médico, membro da Sociedade Brasileira de Psiquiatria.

Para Clélia Prestes, doutora em psicologia social pela USP e psicóloga do Instituto AMMA Psique e Negritude, "a saúde mental precisa ser assumida por todas as pessoas da sociedade, com o racismo sendo compreendido com seu contexto sócio-histórico, como determinante social de adoecimento e como violência que permeia as relações entre as pessoas".

Um dos pontos críticos é o fato de o racismo poder se apresentar em diferentes circunstâncias e sob diversos aspectos.

"O fato de uma pessoa estar sempre sob a tensão de que a qualquer momento pode ser alvo de preconceito gera um estresse excessivo, produzindo respostas fisiológicas, cognitivas e comportamentais associadas a emoções e sensações negativas", explica o professor da USP.

Segundo Alessandro dos Santos, esse estresse pode aumentar a frequência cardíaca e produzir impactos no sistema imunológico, além de prejuízos à saúde que vão de distúrbios gastrointestinais a sintomas esquizofrênicos.

Uma pesquisa da Universidade de Boston divulgada em julho no periódico científico da Alzheimer's Association mostra que o racismo eleva em 2,6 vezes as chances de declínio cognitivo em mulheres negras que sofrem com a discriminação.

Ivan dos Santos Araújo ressalta que é preciso pensar de forma mais ampla. "A saúde mental tem que ser pensada desde a formação dos profissionais. O médico tem que ter em mente também que o racismo é um importante fator social."

Segundo Clélia Prestes, é importante que o racismo não seja tratado como uma questão relacionada às pessoas negras. A psicóloga explica que a discriminação afeta a saúde mental de todas as pessoas em uma sociedade em que o racismo é estrutural.

Para pessoas brancas ou não negras, pode ser doloroso o desafio de passar pelo processo que é deixar de negar o racismo e superar a culpa e a vergonha advindas do reconhecimento de privilégios.

A assistente social Luciana Reis Oliveira, 48, relata que a discriminação lhe provocou problemas com autoestima, ansiedade e estresse.

"Após a graduação é que comecei a entender como a sociedade funciona e como o racismo nos afeta. A partir daí fui procurar ajuda", diz Luciana, que nos últimos dois anos vem tentando lidar com a questão na terapia. A relação com os filhos, um negro e um branco, também passa pelas consequências do racismo.

"Hoje, meu segundo filho tem 17 anos, e ele é negro. Morro de medo de ele sair à noite, controlo muito, até demais. Eu vou mostrando pra ele o quanto a polícia é violenta com os meninos negros", diz Luciana.

A assistente social Luciana Reis Oliviera, 48, em seu apartamento no centro de São Paulo; Luciana tem um meio sorriso na foto, em que aparece usando uma camiseta amarela, apoiada no parapeito do corredor do prédio, que é aberto
A assistente social Luciana Reis Oliviera, 48, em seu apartamento no centro de São Paulo - Folhapress

Ana Paula, mãe de uma menina de 11 anos, conta que passou por sentimento semelhante. "Eu nunca quis ser mãe e eu não sabia direito o que era racismo. Mas o meu maior medo já era ter um filho homem. Eu dizia, mesmo sem ter consciência, que ter um filho homem era ter problemas com a polícia. E mulheres que não são negras não têm essa preocupação."

É assim, segundo Clélia Prestes, que o racismo acaba atingindo também o entorno social de sua vítima. "Não apenas os familiares, mas atinge toda a sociedade, porque passa a informação de que algumas vidas têm menos valor do que outras. Algumas mortes ficam mais banalizadas", diz a psicóloga.

Segundo ela, quando se fala em genocídio da população negra, deve-se entender que é um genocídio também das expectativas, "da possibilidade de gostar de si mesmo e de gostar de outras pessoas e a possibilidade de viver de forma digna".

Como forma de lidar com os impactos do racismo na saúde mental, o professor Alessandro Santos destaca que é importante desenvolver desde cedo processos educativos que estimulem a ação solidária e cooperativa e a possibilidade de discussão franca sobre as relações étnico-raciais.

Já o psiquiatra Ivan Sousa ressalta a importância de os profissionais de saúde tratarem com maior receptividade os pacientes que chegam aos consultórios. "Acolha, valide este sofrimento. Com o tempo, as possíveis questões sobre racismo vão aparecer. Não tentar compreender quem é esse sujeito pode ser outra forma de causar sofrimento."

Para Ana Paula, o apoio externo foi fundamental na reconstrução da autoestima. "Na faculdade tive contato com outras mulheres negras e com uma professora também negra. Elas foram me apresentando elementos da cultura afro. Com o apoio delas, fui me empoderando e criando coragem para enfrentar essa situação."

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