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Sem férias, agosto na USP ainda é primeiro semestre letivo

Desigualdades entre estudantes e faculdades pressionam EaD, que tem sido recalibrado

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São Paulo

Em 2020, o mês de agosto não significa fim de férias e retomada das aulas. A pandemia da Covid-19 bagunçou calendários das instituições de ensino no país, arrastando o primeiro semestre letivo para dentro do segundo, que começa apenas em 15 de setembro e será todo remoto.

Tem sido assim na Universidade de São Paulo (USP), cujo início das aulas remotas foi desigual entre faculdades e escancarou as desigualdades de acesso entre estudantes da instituição.

Alunos da Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Sociais e História chegaram a pedir o cancelamento do semestre por problemas de acessso a internet, a equipamentos ou a um ambiente doméstico adequado ao atendimento das aulas.

A USP forneceu 2 mil kits de acesso à internet para alunos com dificuldades, mas, em algumas faculdades, os alunos se organizaram por conta própria para obterem desde o empréstimo de equipamentos até mudanças no sistema de avaliação.

"Gradualmente, houve uma mudança do perfil socioeconômico dos estudantes. Cada vez mais estudantes de baixa renda, de escola pública e negros. Algo muito diferente do que existia anos atrás", avalia Marco Antônio Paranhos, 20, estudante do segundo ano de direito, que acessou a universidade por meio do sistema de cotas.

"A gente não tem a melhor internet, as melhores instalações e, se não temos uma rotina de estudos muito regrada, a gente se perde", diz ele, que voltou a Salvador, sua cidade natal, no início da pandemia, a pedido dos pais, e participa das aulas e atividades acadêmicas desde a capital baiana.

A estudante do primeiro ano de Psicologia na USP Carolina de Almeida Magalhães, que divide com a mãe o único notebook da casa: "Quando ela precisa trabalhar, tem prioridade, e assisto às gravações das aulas depois", conta ela.
A estudante do primeiro ano de psicologia na USP Carolina de Almeida Magalhães, que divide com a mãe o único notebook da casa: "Quando ela precisa trabalhar, tem prioridade, e assisto às gravações das aulas depois", conta ela. - Arquivo Pessoal

O sistema de EAD (educação à distância) se soma aos desafios da redução orçamentária das universidades paulistas e tem sido recalibrado a partir de constatações e experiências.

Larissa Alexandre, 24, estudante do segundo ano de medicina, membro do coletivo Núcleo Ayé e diretora de permanência do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, diz ter sentido na pele essa dificuldade de adaptação ao novo sistema.

Ela só conseguiu assistir às aulas porque ajudou a articular, junto à faculdade, o empréstimo de computadores e modems para alunos com problemas de acessibilidade, como ela, para quem o celular não era uma opção. "Fica muito estranho. Parece que, a qualquer momento, você vai acabar entrando no Instagram", brinca.

"Compramos chips pré-pagos para os alunos colocarem no celular e rotearem a internet do celular para o notebook. E fazemos a recarga de R$ 20 por mês, que dá certinho pras aulas", explica. "Mas a faculdade de Medicina é muito elitizada. Eram poucos os alunos que precisavam desse apoio. Sei que não é essa a realidade de toda a USP", diz.

O estudante do segundo ano de ciências sociais Matheus Cordulino, 25, já tinha se mudado pra casa do então namorado, onde havia melhor conexão de internet, quando surgiu a oferta de kits de acesso pela USP.

Os percalços pessoais desse período, como a doença de parentes, o fez optar pelo trancamento de 3 dos 4 cursos em que estava inscrito.

"Dada a quantidade de conteúdo e a transposição para o EaD sabendo que estamos num momento de fragilidade emocional, eu não consegui me manter nas quatro disciplinas iniciais", diz. "Me causava muita ansiedade receber cinco e-mails, todos os dias, tratando dos encontros, textos, participação nos fóruns", justifica.

Para quem estava chegando agora na universidade, foi um choque. "Tivemos só duas semanas de aula presencial", explica a caloura de psicologia Natália Lucas Pereira, 20, cuja estreia na experiência universitária foi tão inusitada quanto interessante.

"Como não deu tempo de formarmos grupos, nossa turma está agindo como um todo", completa sua colega de turma Carolina de Almeida Magalhães, 19. Elas ajudaram a organizar um levantamento sobre as condições e as dificuldades de acesso a computadores e internet de todos os novos alunos recém-chegados ao Instituto de Psicologia.

Descobriram que 8% deles não tinham acesso a computadores em casa, 28% compartilhavam o computador existente com outras pessoas da casa e 14% não tinham acesso à internet ou o tinham em um grau insuficiente para as aulas. Quase 63% tinham um ambiente silencioso e confortável para assistir às aulas.

Com isso, abriram um canal de diálogo com a instituição que pautou certos princípios do EAD. Entre eles, está a redução do tempo das aulas por conta do cansaço do modelo via tela, a gravação das aulas para que sejam acessadas posteriormente por quem não tem condições de estar ao vivo no horário programado, avaliação por trabalhos no lugar de provas, e a criação de plantões online dos professores para evitar perdas pedagógicas.

"Sem isso, fica muito injusto", afirma Carolina, que divide o único notebook da casa com a mãe. "Se ela precisa trabalhar neste horário, ela tem prioridade no uso", explica ela, que recorre às aulas gravadas para não perder conteúdos.

Sobre a resistência apresentada por alguns professores a respeito do modelo de aula ao vivo que gravada, ela arrisca: "São professores universitários com mentalidade de escola".

Mateus Fontes de Lima, 22, também calouro da psicologia, conta que essas dificuldades de acessibilidade atingem igualmente os professores.

"Estamos em lugares diversos, e não podemos desconsiderar isso. Outro dia acabou a luz em casa bem na hora da aula", conta ele, que já teve aula com uma professora que teve de ir para dentro do carro, no qual ligou o celular, porque também ficou sem energia em casa.

E, como estudante de psicologia, tem um aspecto que ressaltam como aquele ainda muito mal-resolvido: "A situação emocional de alunos e professores ainda é muito negligenciada".

Segundo o levantamento feito pelo grupo, 83% dos calouros de psicologia se disseram angustiados, 73% se sentiam desmotivados em relação às aulas à distância e 72% se sentiam improdutivos.

Se houvesse algum lado positivo nessa nova realidade, diz Mateus, seria a nova proximidade com alguns professores. "Entramos literalmente na casa deles e nos tornamos mais próximos deles porque sofremos juntos."

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