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'Tomo remédio para não lembrar do horário que meu filho passava com o cavalinho dele'

Leidiane Fernandes, 32, é mãe de adolescente morto pela polícia do Ceará dentro de casa

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Fortaleza

Leidiane Rodrigues Fernandes, 32 anos, é mãe de Mizael Fernandes da Silva Lima, morto com um tiro no dia 1º de julho aos 13 anos em ação policial enquanto dormia na casa dos tios em Chorozinho, no interior do Ceará —segundo a família, os policiais invadiram a casa de madrugada afirmando terem recebido denúncia de que procurados estavam escondidos ali.

O governo do Ceará informou que os policiais que participaram da operação foram afastados das ruas e uma investigação foi aberta pelo CGD (Controladoria Geral de Disciplina), órgão independente; também está em curso um inquérito policial militar.

Um mulher está sentada no sofá vendo fotos em uma casa sem reboco; ao fundo, um homem a observa da porta
Leidiane Rodrigues Fernandes segura fotos do filho Mizael Fernandes da Silva Lima, morto em ação policial, sentada em sua casa na cidade de Chorozinho, no Ceará - Arquivo pessoal

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O Mizael tinha acabado de ganhar um celular, novinho, mas não deu tempo de instalar nada. Ele pedia há algum tempo e foi bem no dia em que o mataram. Ele também ganhou, tem bem pouco tempo, o que ele pedia havia anos, que era um cavalo.

Mizael era louco por cavalo e o pai dele [José Vicente] deu o primeiro cavalinho. Ele deu o nome de Relâmpago para o cavalo. O sonho dele era ser vaqueiro, participar de vaquejadas. Treinava sempre e todo dia passava aqui em frente, por volta das 13h, dizendo que ia até o pai com o cavalo, com os amigos. É o horário que tomo o diazepam, que estou vivendo desse remédio para não lembrar o horário que meu filho passava aqui com o cavalinho.

O que eu quero, do fundo do meu coração, é que se faça alguma coisa, justiça. Peço ao Camilo [Santana, governador do Ceará] que se coloque no meu lugar, se fosse o filho dele? Meu filhinho nunca foi bandido, nunca pegou em uma arma, nunca fumou um cigarro. Porque é muito triste ver os amigos do meu filho passando aqui em frente para a vaquejada e meu filho não poder mais. E quem matou ele continua aí solto, como se nada tivesse acontecido.

Um cavalo está parado no pasto perto de um muro
Relâmpago, o cavalo de Mizael Fernandes da Silva Lima, morto dia 1º de julho em ação policial em Chorozoinho - Divulgação

Nós moramos em Salgado, que é distrito de Chorozinho [cidade a 70 km de Fortaleza]. É na zona rural, trabalhamos colhendo castanhas. No início da quarentena tudo parou, mas agora voltamos. O Mizael nos ajudava. Ele ia para o colégio de manhã, do meio dia para tarde ele tinha o cavalinho, mas também ajudava a gente com as castanhas.

Tem meu marido e tenho mais três filhos. Francisco tem 17, é o mais velho, a Heloísa tem 5 e Ângela, 4. A menor era muito apegada ao Mizael, pede todo o tempo para eu ir buscar ele na avó. Eu digo que ele virou uma estrelinha e sempre vai cuidar dela. É triste, choro muito.

Quando começou a quarentena, como não havia trabalho com a castanha, ele disse que queria ir para a avó materna, ficar um tempo com ela. Eu disse para ir, mas ele acabou adoecendo. Talvez tenha sido uma picada de inseto, ele era muito branco e inflamou.

Foi por isso que ele foi para a casa da tia [Lizangela, irmã de Lidiane e onde Mizael foi morto], para ir ao médico, que receitou pomada para passar na perna, também tomou Benzetacil.

Minha irmã mora no Triângulo [outro bairro de Chorozinho]. Ele tinha comprado o celular, mas o médico passou o remédio e ele iria dormir cedo, eu disse pra deitar cedo, para descansar, por volta das seis, sete horas da noite. Aí aconteceu de madrugada. Ele estava dormindo em uma caminha. Disseram que entraram e atiraram.

Quando ligaram, meu filho mais velho atendeu, eu não sabia que ele já tinha morrido. Fui para o hospital, cheguei lá e disse que era mãe do Mizael, o menino que tinha recebido o tiro da polícia. Uma moça, enfermeira acho, quem disse: "Mãezinha, seu menino já chegou morto aqui".

Adolescente de cabelos loiros curto e camiseta branca longa segura um aro de metal
Mizael em evento na escola que frequentava em Chorozinho - Arquivo pessoal

Comecei a chorar, tinha alguns policiais de Chorozinho lá, fui falar com eles, gritando, mas não tinham sido eles, tinham sido homens do Cotar [Comando Tático Rural. Após Mizael ser baleado, os policiais o levaram para o hospital. O governo não diz quantos estavam na ação que resultou na morte de Mizael e nem confirma se foi encontrada uma arma no local que justificasse o tiro, primeira versão dada].

Conseguimos fazer o velório, apesar do coronavírus, e enterramos de manhãzinha. Ele estava dormindo quando morreu e até hoje não encontramos o celular novinho dele, que ele tinha acabado de comprar sem instalar nada. Sumiu.

Todos adoravam o Mizael, ele estava no sexto ano. Não dava trabalho, nunca fui chamada na escola, o diretor disse isso no velório, quanto Mizael era esforçado. Ele gostava muito de português e dizia que queria aprender várias línguas para poder viajar para fora do Brasil e participar de vaquejadas. Era o sonho dele.

O que me machuca também é ver que enquanto as pessoas que fizeram isso com ele continuam soltas, minha irmã é que está presa na verdade. Ela está sob proteção [a pedido da Defensoria Pública], escondida, ela e mais quatro pessoas que estavam na casa no dia do acontecido. Falo com ela todo dia, de manhãzinha, mas no fim das contas é ela que está foragida, que teve que sair da própria casa.

E as pessoas têm medo. No domingo [2 de agosto] nos preparamos para fazer uma homenagem e ao mesmo tempo um protesto para o Mizael no Triângulo, levei balões que eu soltaria, bateríamos palmas pedindo justiça e paz. Chamamos muita gente, mas ninguém apareceu. Não soltei os balões, voltamos para casa.

Acredito que a justiça será feita. Se eles [policiais] fizeram algo errado, que assumam o erro. Nenhuma justiça será paga, meu filho não volta, mas que sejam homens e assumam que fizeram.

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