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Adoções de Flordelis refletem falha estatal na proteção à criança

Filhos em situação irregular e agressões são algumas das suspeitas dentro da família da deputada e pastora do RJ

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Rio de Janeiro

Os tiros que cortaram a madrugada de 16 de junho de 2019 expuseram uma trama familiar que se emaranha desde os anos 1990. Para além de um assassinato, a história envolve o passado e o futuro de mais de 50 crianças e adolescentes.

O enredo da família da deputada federal e pastora Flordelis dos Santos, acusada de ser a mandante da morte de seu marido, Anderson Gomes, inclui suspeitas de adoções ilegais, agressões e falhas do sistema de proteção a menores de idade no país.

As adoções de ao menos seis de seus filhos e netos afetivos são nebulosas e geraram questionamentos no último ano, desde que os olhos se voltaram para a casa amarela de Niterói onde vive boa parte da árvore genealógica de 55 filhos e 12 netos.

A Folha apurou que atualmente dez crianças e adolescentes da família têm prontuários abertos no Conselho Tutelar local, o que significa que eles estão sendo acompanhados para verificar eventuais violações de direitos (pela família, pelo Estado ou por outros agentes).

Também foram abertos ao menos uma investigação pela Polícia Civil e um procedimento administrativo pela Promotoria da Infância e Juventude, sobre a situação de crianças específicas. Todas as ações correm em sigilo por envolverem menores de idade.

Flordelis iniciou a trajetória como pastora evangélica nos pequenos cultos que a mãe organizava na favela do Jacarezinho, zona norte carioca, onde nasceram seus três filhos com o ex-marido. Ali, também conheceu Anderson, então com 14 anos.

Os primeiros cinco jovens que ela abrigou eram da própria comunidade. Em 1994, recebeu mais 37 de uma só vez após uma chacina na estação Central do Brasil. Os outros vieram com o tempo, todos em situação de vulnerabilidade.

Um deles sempre foi apresentado como o único filho biológico do casal: Daniel dos Santos de Souza, hoje com 22 anos. Durante a apuração do homicídio, porém, depoimentos e provas documentais levaram a deputada a admitir que não é sua mãe, como revelou o jornal Extra.

A mãe biológica, Janaína Barbosa, relatou aos investigadores dificuldades para visitar o bebê depois que pediu que Flordelis cuidasse dele. O jovem foi registrado em nome dos pastores, apesar de ser crime registrar o filho de outra pessoa como seu, com pena prevista de até seis anos de prisão.

História parecida conta Carla dos Santos, que pediu que a deputada acolhesse suas três filhas em 2007, quando foi presa por furto, mas diz não ter concordado com as adoções. No ano passado, após a repercussão do assassinato, Carla foi à delegacia de Niterói registrar uma ocorrência na tentativa de rever as filhas.

Ela afirmou ao jornal O Dia que assinou um papel na prisão pensando ser uma guarda provisória, mas depois descobriu ser adoção. Flordelis prometeu que ela poderia ver Monique, hoje aos 23, e as outras duas menores de idade, mas depois barrou a aproximação. A reportagem tentou contato com Carla, sem sucesso.

Outra história a ser esclarecida é a de Rayane dos Santos Oliveira, neta afetiva da deputada e uma das dez pessoas presas pela morte de Anderson. A jovem foi recolhida com poucos dias de vida em 1993 na Central do Brasil e registrada anos depois por Simone, filha biológica de Flordelis, e André Luiz, filho afetivo, que foram casados.

Um homem de máscara está algemado e é conduzido por homens da polícia, com distintivo no peito
Filhos de Flordelis são presos por suspeita no envolvimento na morte do pastor Anderson do Carmo - Reprodução / TV Globo

Não existe, porém, um processo de adoção formal na Justiça, segundo o Extra —o Tribunal de Justiça disse que não divulga informações do tipo. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que a diferença de idade entre o adotante e o adotado precisa ser de no mínimo 16 anos. Simone e André eram mais jovens do que isso quando Rayane nasceu.

A sexta filha afetiva envolvida em polêmica é uma adolescente de 17 anos que viveu por seis anos na casa de Niterói sem sequer ter certidão de nascimento, conforme também revelou o Extra no ano passado. Flordelis a matriculou na escola irregularmente, como relatou em um discurso pela desburocratização da adoção.

Os pais disseram à polícia que a menina desapareceu e que nunca deram consentimento para que ela fosse morar com a deputada. Ela teria passado pelas mãos de três pessoas até chegar à pastora.

Foi esse caso que levou a Delegacia de Proteção à Criança de Niterói a abrir um inquérito em outubro, a pedido do Conselho Tutelar. Agora, com o fim das investigações da morte de Anderson, a Delegacia de Homicídios está enviando às unidades competentes as informações sobre outros crimes supostamente cometidos na família.

A vasta gama de depoimentos também traz relatos de agressão. Lucas, 19, denunciado por ter ajudado a comprar a arma do crime, contou que a mãe “tinha um taco de beisebol para bater nos outros”. Havia uma nítida diferença de tratamento entre a primeira geração de filhos e os demais, apontou a apuração.

Maria Aparecida Limeira, 69, que viveu com a família no fim dos anos 1990 e ajudou a cuidar das crianças, disse que elas apanhavam quando faziam algo errado e que presenciou os pais passando pimenta na boca de quem falasse palavrão.

A Folha enviou questionamentos a Flordelis sobre cada um dos casos relatados, mas não obteve retorno. A deputada também não respondeu quantos de seus filhos são adotados e de quantos ela detém a guarda legal. Desde o assassinato de Anderson, ela nega ter participado do crime.

A pastora sempre conta que o casal teve de fugir e passar quatro meses escondido com as crianças em 1994, chegando a dormir um dia na rua, depois que sua história foi exposta em uma reportagem e chamou a atenção do Juizado de Menores. Um juiz deu 24 horas para que todas fossem para abrigos.

“A situação foi revista pelo juizado após eles passarem por avaliações de um corpo técnico composto de psicólogos, médicos e advogados. O juiz foi substituído e definiu acordo que previa exigências, como morar em um casa com certo número de quartos e fora da comunidade”, disse a assessoria da deputada em 2019.

REDE DE PROTEÇÃO FALHA

O fato de ter sido permitido que um único casal criasse mais de 50 crianças, porém, é visto com estranheza por quem trabalha na área. Abrigos institucionais, por exemplo, podem ter no máximo 20 vagas, segundo resolução dos conselhos nacionais de direitos da criança e assistência social (Conanda e Cnas).

“Adoção não é e não pode ser vista como caridade, o objetivo é formar uma família, laços de afeto. A criança precisa ter individualidade”, diz Rodrigo Azambuja, coordenador de infância e juventude da Defensoria Pública do RJ.

Para o conselheiro tutelar que passou a acompanhar o caso neste ano, em Niterói, a história da família reflete uma rede de proteção falha. “Todas essas crianças deveriam ter sido assistidas. Quem foi omisso? O Conselho Tutelar, o Ministério Público, a sociedade, o juiz?”, questiona Edson Brito.

Brito, que agora faz visitas aos adolescentes, chama atenção para o fato de a opinião pública estar mais preocupada com o assassinato do que com as crianças: “Estão se voltando para um homem que já teve um futuro definido e se esquecendo de várias crianças com um futuro duvidoso”.

A desatenção, diz, se reflete na falta de estrutura. Ele relata ter o acompanhamento de uma psicóloga apenas por dois dias na semana, e não cinco, e não ter nenhum funcionário administrativo. “Vai haver muitas Flordelis”, afirma.

Silvana do Monte, presidente da comissão de direitos da criança da OAB/RJ, lembra que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) obriga a existência de vara de infância em cidades de mais de 100 mil habitantes, com pelo menos um psicólogo, um assistente social e um pedagogo cada uma.

“O problema da adoção não está nas leis, está no descumprimento delas. No Rio tem 7 milhões de habitantes, então em tese deveria ter 70 varas e 70 pedagogos. Temos quatro varas e nenhum pedagogo na cidade. Afinal criança não vota, não dá dinheiro, não aparece”, critica.

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