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Depoimento: 'Vi morador de rua há 4 dias sem comer, mas vi a solidariedade crescer, na pandemia'

Repórter da Folha relata como foi adaptar projeto que entrega comida para quem está na rua durante a crise da Covid-19

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São Paulo

Há quase dois anos, dedico as noites de terça-feira a um mesmo propósito: levar comida para moradores de rua em São Paulo.

Eles não são poucos. O último censo realizado pela prefeitura, divulgado no começo deste ano, estima que 25 mil pessoas têm como casa as calçadas e viadutos da cidade.

A finalidade do grupo ao qual me juntei, os Anjos das Ruas, sempre foi encarar quem mora na rua como é: um ser humano. Levar comida, cobertor e atenção a quem está vulnerável. Só que não contávamos que, no meio do caminho, haveria uma pandemia. E ela exigiu de todos não só isolamento, mas hábitos de higiene regradíssimos (e totalmente dissonantes de quem vive sem ter, nem sequer, onde lavar as mãos).

Como continuar?

No primeiro mês, tudo era novo e confuso. Pensando no cuidado coletivo –dos 30 voluntários e de quem mora na rua, que pode ter imunidade mais baixa–, decidimos parar. Como muitos, acreditamos que seria passageiro.

Os dias foram avançando, o comércio, fechando, e as únicas possibilidades dessas pessoas trabalharem ou comerem se esvaíram. A lanchonete que descolava um bico parou; os carros no semáforo, que às vezes deixam uma moeda, minguaram; o vaivém de gente nas avenidas se dissipou. Mas essas pessoas continuavam lá.

Decidimos então retomar nossas entregas de comida com adaptações. Montamos dois grupos de apenas quatro voluntários --aqueles que se sentiam confortáveis para ir e que não moravam com ninguém do grupo de risco. Passamos a nos revezar, a cada 15 dias, para diminuir a exposição.

Usamos máscara, touca no cabelo, luvas descartáveis, álcool em gel. A comida, que antes chegava em várias etapas (era água, bebida quente e fria, prato principal e fruta de sobremesa), virou uma marmita única. A ideia era não servir nada, apenas entregar.

A redução do contato pesou. Eu faço parte do censo do projeto e tenho como papel conversar. A ideia é abordar quem se mostra aberto para entender quem é, por que está ali, onde quer chegar. Nesta nova configuração, porém, não poderíamos mais bater-papo na hora de dar a comida. O sorriso, uma das mais importantes formas de acolhimento, foi escondido pela máscara.

O fato é que todas essas preocupações acabaram quando, na primeira entrega que fiz após a parada do grupo, um homem me pediu mais uma marmita e falou: estou há quatro dias sem comer. E eu, onde estava na pandemia? Há quatro semanas trabalhando na minha casa.

Com o tempo, mais grupos voluntários resolveram voltar. O paulistano foi se mostrando solidário e, de repente, passamos a compartilhar a calçada com novos projetos. Cheguei a ter quentinha recusada: “hoje eu já comi, obrigado!”. Incluímos um novo ponto de parada em nossa rota, pois, mesmo com mais gente ajudando, nunca é suficiente. Há pessoas sem comer por toda a parte.

Há duas semanas fui deixar a marmita do seu Nelson, que mora em uma praça do Cambuci com sua amiga Ursa (uma vira-lata peluda e protetora). Ele é um homem de bom coração, mas vencido pelo alcoolismo. Não os encontrei. Outros moradores de rua disseram que um irmão apareceu e o levou para casa. Ele e sua cachorrinha, "pois o Nelson falou que não iria se não pudesse levar a Ursinha".

Talvez eu volte e reencontre Nelson e Ursa por lá. É difícil sair da rua, e explicar por que, de um jeito não-superficial, me tomaria outro relato. Por ora, prefiro dizer que é reconfortante ter esperança. As pessoas têm sentimentos e histórias. Mesmo nas ruas. Mesmo numa pandemia.

Cachorra Ursa, peluda e de pelos pretos, do morador de rua Nelson
Cachorra Ursa, do morador de rua Nelson - Di Rodrigues Fotografia
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