Com 170 kg distribuídos em um corpo de 1,73 m, Amanda Martins Fernandes cansou-se de ouvir em entrevistas de emprego que vaga de trabalho só existia para quem vestisse no máximo o manequim 42.
Naquela época, coisa de 15 anos atrás, a palavra “gordofobia” era pouco conhecida e ainda não tinha sido incorporada ao vocabulário da intolerância —o termo designa o preconceito que pessoas gordas sofrem na vida afetiva, social e profissional.
A discriminação acentuou em Amanda uma depressão de quatro anos, dois dos quais em isolamento, sem coragem sequer de botar a cara do lado de fora do portão de casa.
Com três filhos e um casamento em frangalhos, foi como mãe mobilizadora, um trabalho voltado aos direitos humanos e à cidadania participativa e solidária, que ela encontrou a aceitação que buscava.
Fruto de parceria entre duas ONGs, Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário) e CPCD (Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento), a iniciativa é voltada à primeira infância desde o período da gestação.
Nele, 14 mães mobilizadoras atuam em seis comunidades, envolvendo cerca de 2.000 famílias que vivem em Parelheiros, na zona sul de São Paulo.
Brincadeiras e pinturas com crianças deram a Amanda, 35, um novo sentido para viver. “Eu me redescobri como mãe, mulher. Ninguém ali se importava com o fato de eu ser negra e gorda. Fui aceita e me aceitei. A partir daí se deu o meu empoderamento.”
Ler, sorrir, passear num parque ao lado dos filhos e de outras crianças, coisas que, embora tão simples, eram muito difíceis para ela, ganharam novo significado. Aprendeu a compartilhar histórias.
Redescobriu o valor da amizade e passou a trocar experiências com outras mulheres.
“Aqui, mães são humilhadas, xingadas e desrespeitadas, mas elas não viam nisso um ato de violência”, lembra.
“É importante as mulheres terem ciência de seus direitos, ainda mais num momento em que o feminicídio avança no Brasil. Tempos sombrios”, diz.
Amanda enxerga nas ações das mães mobilizadoras um instrumento para enfrentar as desigualdades por meio de valorização da diversidade.
“O objetivo é contrapor individualismo com solidariedade e compaixão”, explica Flávia Kolchraiber, 43, gestora de projetos do Ibeac. “Elas põem em prática um pensamento africano que diz ‘é preciso toda uma aldeia para educar uma criança’. Somamos a isso, o gesto do cuidar.”
As mães costumam atuar em dupla, o que fortalece as relações de confiança. A chegada do novo coronavírus fez com que o time se adaptasse à realidade, discutida agora em rodas virtuais. As ações buscaram amparo em 4Ps: pão, proteção, poesia e plantio.
”Assistencialismo era algo que a gente evitava. Com a Covid-19, tornou-se necessário”, afirma Rafaela Nunes, 22. “Não tem como falar de diretos da mulher se ela está de barriga vazia, não é mesmo?”
O isolamento prejudicou, só que não impediu, o engajamento. Se antes dele já era difícil dialogar sobre sexismo, machismo, feminismo, empoderamento, com a barreira do distanciamento, as carências se destacaram na pauta.
No meio da crise e do desemprego, o Clube de Troca se fortaleceu. Panela, galinha, sapatinho de bebê e banheira, ali se troca um pouco de tudo. Até poemas e frases.
“Vivemos bem longe. É como se estivéssemos em um mundo à parte, invisível aos olhos da cidade rica”, conta Marcela de Jesus Nascimento, 28. Mãe de dois filhos, ela se debruça sobre iniciativas de proteção a gestantes e crianças de zero a seis anos.
“Muitas nunca foram ao ginecologista. Tem mãe aqui que não sabe explicar para a filha como se usa um absorvente”, afirma. Falar de sexo, num ambiente de forte presença religiosa, ainda é tabu.
De uma simples troca de áudio pelo celular a lives com pesquisadores, levar informação a um lugar tão carente não é tarefa das mais fáceis.
“Nessa região falta água, falta luz. Não pega celular direito. O transporte é precário. Um simples telefonema, que traga informação e afeto, faz uma baita diferença na vida delas”, ressalta Marcela.
As mães mobilizadoras já distribuíram 8 toneladas de alimento, mil cartões-alimentação, 25 mil máscaras de proteção e 4.000 novos livros.
Única delas sem filho, Thaís Pinheiro, 25, percebeu que o grupo tem sido procurado por gestantes jovens, dos 15 aos 20 anos, perfil que dobrou durante a pandemia. “São meninas que abandonaram a escola, desrespeitaram as normas de isolamento social e engravidaram. Seus companheiros estão ausentes ou se mantêm a distância.”
Em Parelheiros, o índice de gravidez na adolescência atinge 16,53%. Ele só é menor do que o registrado no distrito de Marsilac, com 18,85%, segundo o Mapa da Desigualdade, da Rede Nossa São Paulo.
Thaís aborda violência obstétrica e plano de parto. Sente falta das tradicionais visitas olho no olho, porque “nada substitui o contato humano”.
A volta de afagos entre as mulheres só deve ser retomada com a chegada de uma vacina. Thaís permanece otimista. Faz planos para o próximo semestre, quando deve terminar a faculdade de pedagogia.
Aí, sim, ela espera estar pronta para transformar em realidade o sonho de ser mãe.
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