Milícias adaptam comportamentos para atuar em áreas ricas do Rio

Moradores da zona sul e da Barra relatam ofertas de proteção e construções irregulares

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Rio de Janeiro

Se na periferia chega-se com o pé na porta, nas áreas elitizadas a fala é mansa. Ao menos na primeira abordagem. Poder paralelo que vem abocanhando territórios por décadas sob jugo do tráfico carioca, a milícia desenvolveu um modus operandi diferenciado para atuar nas regiões mais ricas do Rio de Janeiro.

“O padrão dos milicianos é muito plástico. São criativos e flexíveis, vão para onde tem grana. E aí tem as histórias de como os caras começam a se implantar progressivamente nessas partes da cidade”, afirma o sociólogo José Cláudio Alves, que estuda o tema há quase três décadas.

“Colocam cancela, dizem que vão tomar conta da rua, um morador os confronta, fala que não quer pagar e começa a ter tantos problemas que acaba pagando.”

Vista aérea de prédios que caíram na Muzema, região controlada por milícias
Vista aérea de prédios que caíram na Muzema, região controlada por milícias - Sergio Moraes - 12.abr.19/Reuters

Algo do gênero pode ter acontecido em Laranjeiras, que junto com o Cosme Velho forma a zona eleitoral onde Marielle Franco (PSOL) teve mais votos —suspeita-se que ela tenha sido assassinada a mando da milícia.

Uma agência do Bradesco nesse bairro da zona sul virou alvo em maio de 2018. Testemunhas relataram na época que bandidos armados chegaram em dois carros, explodiram caixas eletrônicos e fugiram. Tapumes ainda cercavam a agência, alvo do mesmo crime oito dias antes.

A Folha conversou com uma pessoa que pediu anonimato e que relata o seguinte: um grupo ofereceu segurança ao banco, que negou. Depois do primeiro episódio de violência, a proposta voltou à mesa. Nova recusa, nova explosão.

O Bradesco diz que registrou boletim de ocorrência dos dois casos e que desconhece a relação dos ataques com represálias de grupos criminosos. A segurança no estabelecimento, segundo o banco, é feita por uma empresa autorizada pela Polícia Federal.

A descrição tem verossimilhança com táticas desse poder paralelo, afirma Alves. “Vão te oferecer, você vai negar e imediatamente é atingido. O preço a pagar é o dobro cobrado inicialmente. Se persiste em não pagar, aí já tem risco de algo mais grave.”

Nos subúrbios e nas favelas, a teia miliciana é mais espraiada: cobra-se ágio sobre os serviços mais básicos, como botijão de gás, garrafão de água e sinal clandestino de TV por assinatura (o “gatonet”).

Em 2019, a reportagem foi à Muzema, comunidade na zona oeste vizinha à Barra da Tijuca, onde dois prédios desabaram. Milicianos são acusados de exploração imobiliária ilegal na região, o que inclui cobrança de taxas.

Na porta de um condomínio, a placa: “Prezado condôminos [sic], queremos informar para aqueles que ainda não contribuem com as mensalidades do condomínio”. A partir de janeiro, todos teriam que pagar R$ 60 (apartamento) ou R$ 100 (casa).

No Laguna, restaurante da ilha da Gigoia, a poucos quilômetros dali, um prato com lagosta custa R$ 20 a mais do que o valor exigido de uma casa e dois apartamentos em Muzema. Acessível por barcos, a vizinhança tem clima de vila de pescadores gentrificada pelo turismo, como Búzios.


A Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente foi à Gigoia em 11 de setembro com a meta de coibir a poluição na lagoa local. Acabou prendendo um homem e uma mulher flagrados com um revólver, uma pistola, duas espingardas, uma arma tipo garruchão, dois canivetes, uma faca, um bastão e duas toucas ninja.

São suspeitos, segundo a Polícia Civil, “de integrar uma organização criminosa apontada como responsável pela exploração imobiliária na ilha, que promove a construção clandestina de prédios e causa degradação ambiental”. A cena toda grita milícia. Dois anos antes, outra operação no mesmo CEP deteve 30 pessoas e apreendeu retroescavadeiras e material de construção em obras clandestinas.

Em 1981, um decreto municipal proibiu erguer um tijolo que fosse na Gigoia. Veio 2014, ano de Copa do Mundo no Brasil e com a Olimpíada no Rio logo ali. Nova ordem do poder público deu aval a edificações de até três andares.

O metrô chegou à Barra, de frente para um dos pontos dos barcos que servem de táxi flutuante. Pronto: a região ficou sexy para novos empreendimentos imobiliários, e a milícia, com expertise no ramo, farejou oportunidade.

O publicitário Henrique, 31, conseguiu um emprego na Barra, e todo dia gastava quase duas horas no trânsito até o trabalho.

Um colega já morava na Gigoia, e ele decidiu procurar algo ali. Comeu no mesmo Laguna (mas foi de camarão) e saiu à procura de imóvel para alugar. Minutos depois, conta, um homem de camisa do Flamengo o convidou para conhecer uma obra quase pronta.

“Perguntei o nome da construtora, ele desconversou, depois meu amigo me disse que a milícia estava por trás das construções. Tinha acabado de rolar Muzema [os prédios colapsados], fiquei assustado.”

Presidente da Associação de Moradores da Gigoia, nascido e criado na ilha, Eduardo Dias, 42, se diz contra as novas edificações. “Sabemos que quase todo mês se inicia uma obra. Não sabemos de quem são.”
Para Dias, “centenas de moradores que procuram um lugar sossegado para criar os filhos” são responsáveis pelas dezenas de ligações ao Disque-Denúncia sobre o mercado imobiliário informal.

Nem sempre o poder público é solução. Ainda que hoje exista recrutamento de civis e de traficantes, milicianos são quase sempre policiais, na ativa ou não. Como denunciar ao Estado o próprio Estado?

Veja o caso de uma artista que abriu um projeto no centro do Rio, perto do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Um sujeito lhe sugeriu que contratasse seus serviços. Agradeceu, já tinha câmera de segurança. No dia seguinte estouraram a porta do ateliê. O homem retornou. Cedeu: se quisesse continuar ali, era isso ou isso, concluiu.

Situações como essa, segundo José Cláudio Alves, encaixam-se na estratégia miliciana de ocupar pelas beiradas o “filé mignon” da cidade. “São menos ostensivos. Vão fazer abordagem mais sutil, tentar convencer.” Os grupos também procuram regiões próximas a favelas. Pequenos comerciantes de Ipanema e Copacabana, por exemplo, são potenciais “clientes”.

São criminosos que sempre venderam segurança, diz o “faveleker” e ativista Thainã de Medeiros, do coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão.

“A milícia se ergue em cima da discurso de que a cidade é violenta, que tem uma galera que pode ser perigosa pra você. E a elite morre de medo disso, do pretinho que está descendo pra dar um rolê na praia, cuidar do seu carro. Não pensa duas vezes antes de pagar. Se a truculência acontece longe dela, beleza.”​

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