Descrição de chapéu Coronavírus

Anticorpos de Covid-19 indicarão tamanho real da pandemia e da imunidade

Nova fase da Epicovid, que mostrou impacto da desigualdade social na doença, tenta mapear melhor efeito do vírus sobre cada grupo de pessoas

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São Paulo

No começo de julho, o epidemiologista Pedro Hallal foi a Brasília apresentar os resultados da terceira fase da Epicovid, a pesquisa nacional que tentava descobrir quantas pessoas haviam sido de fato contaminadas pelo coronavírus no país, entre outros aspectos da doença. O estudo mostrou também que a taxa de infecção entre os indígenas era a maior entre os grupos de cor ou etnia autodeclarada.

O Ministério da Saúde contestou os números sobre os indígenas e pediu que não fossem incluídos na apresentação dos dados. Hallal, coordenador do estudo e reitor da Ufpel (Universidade Federal de Pelotas) atendeu ao pedido, mas comentou os achados e os publicou, de qualquer modo. O relacionamento com o ministério vinha se degradando desde a queda do ministro Luiz Henrique Mandetta, em 16 de abril, e se reduziu a quase nenhuma comunicação depois da terceira fase do estudo —a última que seria financiada pelo governo federal, que liberou R$ 12 milhões para o projeto, além dos testes. O governo decidiu não continuar o projeto sem dar explicações, conta Hallal.

A Epicovid foi uma das primeiras grandes pesquisas de soroprevalência do mundo. O novo coronavírus, no entanto, deu um drible nos pesquisadores.

Depois de algumas semanas, o número de anticorpos contra o Sars-CoV-2 começa a diminuir em ritmo inesperado. Ao menos para a sensibilidade dos testes disponíveis para exames em massa, muita gente parece jamais ter sido infectada. Pesquisas desse tipo vinham apresentando relativa estabilidade do número de casos ou um número incompatível com a expansão da doença, visível em outros indicadores.

“Quando vimos a queda dos números na região Norte, achamos estranho. Seria problema da amostra ou da coleta do sangue? Não duvidávamos do teste, que tinha sensibilidade considerável, 86%, para um estudo epidemiológico, que não exige a precisão de um teste clínico”, diz o epidemiologista Fernando Barros, professor emérito da Ufpel.

Naquele momento, não se sabia que o total de anticorpos caía tão rápido. “Na terceira fase nacional [21 a 24 de junho], parecia a hipótese mais razoável. Foi então que começaram a surgir os estudos sobre redução do número de anticorpos”, conta Barros. “Não foi um drible, foi um 7 a 1”, diz Bernardo Horta, um dos epidemiologistas do grupo. Mas alguns resultados permaneceram.

Como tantos aspectos da vida no Brasil, a infecção atinge as pessoas de modo desigual. Pessoas mais pobres, que se aglomeram em residências ou mais vulneráveis socialmente em geral são mais infectadas, o que pode parecer intuitivo, mas não fora documentado de modo extenso no Brasil. A Epicovid registrou ainda que apenas 11% dos infectados eram assintomáticos. Mostrou que crianças pegam tanto o coronavírus quanto adultos.

Os primeiros números gerais da Epicovid foram publicados em estudo do grupo na revista Lancet. Os números refinados do ataque socialmente desigual do vírus vão ser publicados na revista da Organização Panamericana de Saúde. Horta é um dos autores. Os pesquisadores de Pelotas têm trabalhos de reputação internacional na área de desigualdade social e saúde e mortalidade materna e infantil.

Mesmo depois de correções estatísticas, a Epicovid mostrou que indígenas e mais pobres eram mais sujeitos à infecção. Autoridades do ministério contestaram os dados sobre indígenas porque a Epicovid não foi a aldeias e queriam mais informação sobre o “contexto sociocultural” da autodeclaração de etnia, diz Hallal, o reitor da Ufpel, embora a autodeclaração de cor seja um critério de pesquisa utilizado pelo IBGE.

O ministério afirmou em nota que “...as três etapas previstas da pesquisa Epicovid foram executadas e os resultados divulgados” e que “após a apresentação do relatório final, solicitou à universidade o detalhamento e esclarecimentos quanto à metodologia utilizada na pesquisa e os parâmetros de autodeclarados indígenas”.

Apesar do drible, os pesquisadores ainda analisam os dados, com novas perguntas. Um estudo com moradores de Pelotas procura descobrir por quanto tempo os anticorpos para o coronavírus permanecem detectáveis, o que talvez permita “corrigir” os dados de taxa de infecção obtidos até agora.

Aluísio Barros, epidemiologista da Ufpel, diz que os dados brutos ainda sugerem reflexões. Em alguns locais, o uso mais frequente de máscaras está mais associado a casos de infecção. “Ao que parece, pessoas em áreas de grande circulação do vírus tomam mais precauções do que aquelas de regiões em que a doença é menos frequente”, explica.

Cesar Victora, professor emérito da Ufpel, tenta mapear melhor as hipóteses do efeito do vírus sobre cada grupo de pessoas. Algumas pessoas são expostas ao vírus, mas: a) talvez não desenvolvam anticorpos, ou b) seus anticorpos jamais são detectados ou deixam de sê-lo depois de um tempo. Além do mais, talvez exista um grupo de pessoas com imunidade prévia, inata, produzida por células de defesa (e não detectáveis pela presença imediata de anticorpos) ou derivada de uma exposição prévia a outro tipo de coronavírus. É um mapa de dúvidas para tentar saber o tamanho real da epidemia e da imunidade.

O grupo de troca de mensagens entre os pesquisadores da Epicovid era chamado de “Sufocovid”. Além das bolas divididas com o ministério e dos dribles do vírus, a Epicovid teve de enfrentar também “fake news”. Na estreia da pesquisa nacional, em maio, alguns dos 1,7 mil pesquisadores de campo foram levados para delegacias para prestar depoimento, testes foram apreendidos, outros inutilizados. Havia boatos de que seriam golpistas, assaltantes ou poderiam infectar a população. Em algumas cidades, prefeituras proibiram a pesquisa, algumas alegando que não teriam sido avisadas pelo governo federal.

A ideia da Epicovid surgiu em março, mês da primeira morte no país. Hallal estava no comitê científico que assessorava o governo gaúcho e sugeriu uma pesquisa estadual, que começou em abril, com apoio do Instituto Serrapilheira, da Unimed e do Instituto Cultural Floresta. Antes mesmo dos primeiros resultados estaduais, fechava um acordo com o governo federal para fazer o estudo nacional.

A Epicovid continua. A quarta fase foi realizada no final de agosto, financiada pelo Todos pela Saúde, iniciativa do Itaú Unibanco. Haverá mais duas, com apoio da Fapesp, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, agora coordenadas por Marcelo Burattini, da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, que já trabalhava no estudo. A metodologia é a mesma: amostras da população de 133 cidades de todos os estados, com cerca de 33 mil entrevistados em cada rodada.

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