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Maíra Zapater

Cadastro de estupradores cria pena eterna ao invés de reabilitar condenados

Não há evidência de que medida, aplicada nos EUA há 24 anos, previna novos crimes

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Maíra Zapater

Em 1994, a norte-americana Megan Kanka, então com 7 anos, foi sequestrada, violentada e morta por um vizinho, ex-detento condenado por crime sexual. Até o ocorrido, ninguém sabia do histórico do homem.

O caso foi a faísca para que em 1996 fosse adotada nos EUA no âmbito federal um modelo de legislação já utilizado em alguns estados norte-americanos, determinando o cadastramento de criminosos sexuais para informar a vizinhança e, alegadamente, torná-la segura.

Não há nenhum dado que evidencie o sucesso das “Leis de Megan” (como ficaram conhecidas) em relação ao seu efeito preventivo, o que não deveria causar estranhamento: apesar da possível sensação de segurança produzida pela vigilância dos ex-detentos, persistiu a subnotificação dos crimes sexuais, pois somente são cadastrados os autores dos casos que chegam à Justiça.

Nada impede, portanto, que novos crimes tenham sido praticados sem jamais serem descobertos —seja seu autor cadastrado ou não. O que se conhecem são os efeitos da divulgação pública dos dados: perseguição; hostilização e linchamentos dos cadastrados; e dificuldades de obter e manter empregos e etc.

Três décadas mais tarde, o Brasil parece ter se inspirado nessa política ineficaz ao criar o Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Estupro, com a Lei n.º 14.069/2020.

Seu texto, de quatro artigos, estabelece que serão cadastradas no mínimo as informações sobre as características físicas e dados de identificação datiloscópica; identificação do perfil genético; fotos; local de moradia e atividade laboral desenvolvida, nos últimos 3 anos, em caso de concessão de livramento condicional. O pretexto apresentado é o mesmo: prevenção à prática desse crime.

O texto reforça discursos de soluções fantasiosas para situações de violência, sem qualquer lastro sobre sua eficácia, e afronta a Constituição ao violar o direito à intimidade e à vida privada —e não só das pessoas cadastradas, pois registrar dados sobre local de moradia e trabalho destas torna possível obter informações sobre quem com elas vive ou trabalha.

Com isso, fere-se outra norma: a que proíbe que as penas ultrapassem a pessoa do condenado.

Nem seria necessário mencionar a potencial dificuldade destas pessoas conseguirem ou se manterem em empregos uma vez que este fato de seu passado chegue ao conhecimento de empregadores e colegas.

Sobre essa possibilidade, a nova lei vai de encontro ao direito à reabilitação criminal, que assegura sigilo sobre os registros referentes à condenação, a que fazem jus todos os condenados uma vez extintas suas penas.

Aliás, a má técnica legislativa não deixa claro se essas “pessoas condenadas” seriam somente aquelas já submetidas a todo o percurso de um processo criminal ou se bastaria a sentença condenatória do juiz de primeiro grau, mesmo ainda cabendo recursos.

Há outras ausências no texto, como sobre quanto tempo os dados das pessoas cadastradas ficarão registrados. Seria este um controle vitalício? Caso positivo, cabe lembrar que a Constituição veda as penas perpétuas.

Trata-se, portanto, de lei inócua e demagógica, que não combate a cultura do estupro, raiz das agressões sexuais a mulheres e meninas, nem assegura tratamento digno às vítimas. Ao vigiar depois de punir, o Estado ratifica a noção de que a pena aplicada de nada serviu.

Maíra Zapater é professora de Direito da Universidade Federal de São Paulo.

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