Cooperativas de trabalho ajudam a ressocializar presas

Para debatedoras, projetos deveriam ser replicados para diminuir reincidência e ajudar mulheres a deixar o tráfico

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São Paulo

Ainda tímidas e sem apoio estatal, as cooperativas de trabalho formadas por mulheres encarceradas aceleram a ressocialização. As detentas aprendem o ofício, montam um negócio, encontram compradores e repartem o lucro.

A cooperativa não é somente uma fonte de renda, mas um passaporte de ressocialização. Quando saem da prisão, podem seguir no projeto ou vender individualmente.

Desde 2014, essa é a experiência de detentas do Centro de Reeducação Feminino de Ananindeua, em Belém (PA), palco da Coostafe (Cooperativa Social de Trabalho Arte Feminina Empreendedora). No projeto, idealizado pela ex-diretora do CRF Carmen Botelho, as mulheres confeccionam artesanatos e roupas.

Iniciativa semelhante foi replicada na Penitenciária Feminina 2 de Tremembé (SP) com a criação da Cooperativa Lili, em 2018. Em maio de 2019, porém, o projeto foi proibido na penitenciária.

Ainda que cooperadas ligadas à Lili permaneçam presas —cerca de 33—, elas não conseguem mais acessar as atividades do trabalho, que segue do lado de fora com 16 egressas de Tremembé.

Projetos cooperativos também estão sendo gestados no Maranhão, na Paraíba e no Rio Grande do Norte.

“É um modelo de negócio emancipatório”, resume Patrícia Villela Marino, presidente do Instituto Humanitas360, ONG que tem ajudado na estruturação das cooperativas em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O assunto foi debatido na segunda-feira (19) no seminário Encarceramento Feminino, realizado pela Folha, com apoio da Humanitas360, para marcar o lançamento do documentário “Tecendo a Liberdade”, sobre essas cooperativas.

Se fortalecidas e replicadas pelo território, essas iniciativas poderiam preencher um vácuo na aplicação da legislação brasileira.

Apesar de a Lei de Execução Penal prever o direito ao trabalho remunerado dos presos, dados do Infopen (informações estatísticas do sistema penitenciário) mostram que, em 2017, somente 33% da população prisional feminina estava envolvida em alguma atividade laboral. Da parcela que trabalhava, 38% não recebiam remuneração.

A partir da qualificação profissional nas cooperativas, as debatedoras afirmam ser possível diminuir a reincidência criminal e fortalecer outras fontes de renda que não sejam o tráfico de drogas —responsável por 60% das prisões femininas a cada ano.

O projeto é bem-vindo para ajudar a desinchar um já superlotado sistema prisional, afirma a advogada Marina Dias, diretora-executiva do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).

Nas últimas duas décadas, o encarceramento feminino cresceu 560% no país. Enquanto em 2000 as prisões brasileiras abrigavam cerca de 5.600 detentas, hoje são mais de 37 mil mulheres privadas de liberdade.

Dias explica que a Lei de Drogas, de 2006, não fixa critérios objetivos para diferenciar traficantes de usuários. O resultado é a prisão massiva daqueles que estão na base, traficando para sobreviver, e a impunidade dos que organizam a cadeia do crime.

“A maioria das presas não ocupava cargos altos no esquema do tráfico organizado”, afirma a advogada.

Outro problema, acrescenta, é a demora para que as mulheres sejam julgadas. Cerca de 37% das presas hoje no Brasil estão em prisão provisória, o que significa que ainda não foram a julgamento.

“Vi mulheres que estavam aguardando julgamento há mais de um ano e, depois, foram inocentadas”, relata a atriz e cantora Preta Ferreira. “Tem casos em que o tempo que a mulher fica presa ultrapassa a pena que ela cumpriria se fosse comprovada a culpa.”

Em 2019, Ferreira, que é ativista pelo direito à moradia, ficou presa preventivamente por 108 dias, alvo de denúncia que alega que movimentos de ocupação no centro de São Paulo são parte de associação criminosa.

“A falta de políticas públicas voltadas para o trabalhador de baixa renda faz com que a população carcerária aumente”, afirma Ferreira.

Aos prejuízos nas vidas das detentas, acrescenta Marina Dias, do IDDD, se somam aqueles desencadeados na criação dos filhos.

Ainda segundo dados do Infopen, 74% das mulheres encarceradas são mães. E não são poucos os casos em que os filhos estão nos estabelecimentos prisionais. Em junho de 2020, 1.850 crianças estavam em unidades prisionais com suas mães.

As debatedoras frisam também as consequências da chamada pena de multa, que muitas detentas são obrigadas a pagar à Justiça quando deixam a prisão.

Enquanto não quitam a dívida, que varia de caso a caso, não conseguem regularizar o título de eleitor e, consequentemente, fazer a Carteira de Trabalho. “É uma perpetuação do ciclo da violência”, diz Dias.

No documentário “Tecendo a Liberdade”, as pontas desses problemas se unem por meio de depoimentos de ex-detentas.

Luiza Matravolgyi, diretora e roteirista, diz que o objetivo do filme é refletir sobre o encarceramento feminino e consolidar alternativa às produções audiovisuais que retratam o tema.

“Já existem muitas produções que tratam dos problemas. Ainda que as soluções precisem ser lapidadas, pensar em caminhos possíveis é uma parte importante.”

O desafio, diz, foi assegurar que as protagonistas seriam retratadas como trabalhadoras, e não apenas como mulheres privadas de liberdade.


Assista à íntegra do seminário:


O seminário teve mediação de Fernanda Mena, repórter especial da Folha. É possível assistir ao documentário “Tecendo a Liberdade” até 23 de outubro aqui.

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