Crânios 'visitam' estátuas para marcar história violenta em SP

Grupo faz protestos em símbolos nacionais marcados por sangue e brutalidade

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Caveiras no monumento as bandeiras no parque do Ibirapuera

São Paulo

Um passado glorioso de conquistas e grandes feitos. Um presente mais do que desconfiado. Um futuro de reputação incerta, refletido nos olhares vazios de enormes crânios que miram para a história esculpida em pedra e bronze.

A estátua de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera ou “Diabo Velho” em Tupi, na Paulista, é uma delas. O Monumento às Bandeiras, em frente ao Ibirapuera, outro. Logo ao lado, uma pequena praça em frente ao 2º Exército, mais uma. Na zona sul, a controversa imagem de Borba Gato também já recebeu a visita dos esqueletos sem corpos.

Desde junho, um grupo formado por professores, artistas, advogados e ativistas, entre outros, propõe um novo olhar da sociedade para símbolos da nossa história marcados por sangue e violência.

O Grupo de Ação, assim batizado por seus cerca de 40 integrantes, e que se descreve como “uma aliança suprapartidária e anticapitalista de pessoas movidas por uma força sem nome próprio, feita no acaso da necessidade”, fez sua primeira intervenção durante a pandemia do novo coronavírus para lembrar os, à época, cerca de 100 mil mortos e a inação do governo federal sob a gestão Jair Bolsonaro (sem partido).

Atos no prédio da Fiesp, a federação das indústrias paulistas, questionando quem lucra com as mortes e um anti-Sete de Setembro na mesma avenida se seguiram. Mas e as caveiras em frente às estatuas?

As caveiras foram feitas pela artista plástica Dora Longo Bahia, explica o videoartista Junae Andreazza, 45, integrante do grupo. “Estavam guardadas há anos após serem usadas em algum Carnaval” e passaram a ser utilizadas para ressignificar esses monumentos.


A iniciativa lembra protestos recentes como o ocorrido em Bristol, no Reino Unido, em junho, quando um grupo de manifestantes antirracismo derrubou uma estátua em homenagem a Edward Colston, traficante de escravos e membro do Parlamento britânico que viveu no século 17.

A manifestação foi resultado de atos nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, homem negro assassinado por um policial branco em Minneapolis, e multiplicaram-se em diversas cidades da Europa.
Junae, no entanto, ressalta que por aqui as estátuas visitadas pelas caveiras não foram danificadas. Para ele, a imagem da intervenção é mais forte do que qualquer ação física.

Bandeirantes eram como mercadores de escravos, eram caçadores de pessoas. Achar, hoje, que eles refletem algum tipo de desenvolvimento diz muito sobre o país”, afirma Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP, escritor e ex-colunista da Folha.

Também ele um dos fundadores do Grupo de Ação, Safatle resiste em falar em nome do coletivo por entender que não se trata de um movimento personalizado. Ele, no entanto, vê quase que uma obrigação de um estrato privilegiado da sociedade se manifestar em momentos como o atual.

“Há setores sociais que estão profundamente incomodados também, mas perderam a gramática da luta”, diz.

Movimentos que questionam a legitimidade de certos símbolos nacionais costumam levantar a pergunta se a atualização do significado de símbolos da história é uma forma de reescrevê-la ou a busca por seu apagamento. Safatle rebate com uma constatação. “A história está constantemente sendo reescrita no presente”, afirma.

Para o professor da USP, as intervenções se tratam de uma resposta de um grupo capaz de se articular a um governo que tenta reescrever a história recente do país, notadamente o período da ditadura militar. Safatle vê na atuação da gestão Bolsonaro durante a pandemia, e na ausência de um luto oficial, uma repetição da prática de desaparecimentos de corpos .

“O tipo de prática a que o governo submete o país durante a pandemia do novo coronavírus é uma repetição do que aconteceu na ditadura. É o segundo país do mundo em número de mortes, sem nenhum tipo de luto por parte do governo. Dessacraliza até as sepulturas das vítimas”, diz.

De acordo com Junae e Safatle as reações até agora foram majoritariamente positivas, com apoio das pessoas que assistiram às intervenções.

“Na Paulista, na estátua do Anhanguera, num domingo, a avenida cheia, as pessoas vinham nos dizer que sabiam que os bandeirantes não eram heróis, e sim assassinos”, afirma Junae.

Por sua relação insidiosa com os índios, Bartolomeu Bueno da Silva (1672-1740), o homenageado na Paulista, é considerado hoje um dos mais cruéis dos bandeirantes.

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