Descrição de chapéu Mobilidade Urbana

Denúncias de assédio crescem, mas mulheres ainda têm medo de falar

97% de usuárias de transporte público ou privado foram vítimas de assédio, diz pesquisa

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Anderson Santana Martina Colafemina
Afogados de Ingazeira (PE) e Ribeirão Preto

Traumática, a situação é mais frequente do que se imagina. “Quando percebi, um homem estava se masturbando dentro do ônibus. Fiquei em choque e desci com muito medo de ele vir atrás de mim. Ao chegar em casa, fui tomar banho e me esfregava a ponto de ficar machucada. Me sentia muito suja, mesmo não tendo feito nada”, lembra Isabella Mengelle, 26, que vive em Ribeirão Preto, cidade de 700 mil habitantes no interior de São Paulo.

Pesquisa dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, feita em fevereiro de 2019 com 1.081 mulheres que utilizaram transporte público e por aplicativo nos três meses anteriores, revela que 97% das entrevistadas já foram vítimas de algum tipo de assédio dentro do transporte público ou privado.

O levantamento ouviu mulheres com, pelo menos, 18 anos e de todas as regiões do país. E muitas, assim como Isabella, se veem ou são apontadas como culpadas da situação.

A lei 13.718/2018 criminaliza a importunação sexual —ato de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual. Dados do Conselho Nacional de Justiça apontam que em 2018 foram registrados 75 processos do crime no país. Em 2019, o número saltou para 2.966.No estado de São Paulo, entre 2018 e julho de 2020, foram registrados 5.661 boletins de ocorrência e, em Pernambuco, de janeiro a julho de 2020, foram 92 denúncias em vias públicas.

Visando o combate ao assédio no transporte, o Tribunal de Justiça, o estado e a prefeitura de São Paulo lançaram uma campanha de conscientização que inclui seminários para os trabalhadores do setor e alertas por meio de cartazes e anúncios nos pontos e estações. Em Pernambuco, as campanhas acontecem em Recife, Caruaru e Petrolina.

Os assediadores se beneficiam do anonimato, explica Suzy Balloussier, ex-diretora de Relações Institucionais do BRT-Rio. “Existem circunstâncias nos locais de integração de transporte público que favorecem os crimes de assédio. Eles se aproveitam da aglomeração para cometer determinados atos sem que as pessoas se deem conta”, diz.

O problema não se restringe ao transporte público. Thairiny Rovatti, 26, estava a caminho da rodoviária de Ribeirão Preto quando o motorista do carro que ela havia solicitado por aplicativo se insinuou, convidando-a para ir ao seu apartamento. Ela chegou a pensar em se jogar do carro em movimento. “Não sabia o que era pior: ficar no carro até chegar à rodoviária ou descer no meio da rua, num lugar que era escuro e perigoso. Peguei o celular, fingi que estava falando com alguém e, ao chegar próximo à rodoviária, desci na primeira esquina.”


Mais comum do que se imagina

59% das entrevistadas disseram já ter visto homens abordando mulheres de forma desrespeitosa na rua
37,1% disseram ter sofrido assédio, sendo 32,1% cantadas e comentários desrespeitosos na rua, 7,8% fisicamente no transporte público e 4% fisicamente em aplicativo de transporte •
66,1% das mulheres entre 16 e 24 anos afirmam ter sofrido algum tipo de assédio. Entre 25 e 34 anos, o índice é de 53,9%; entre 35 e 44 anos, 32,5%, e entre 45 e 59 anos, 20,6%

• Algumas disseram ter sofrido mais de um tipo de assédio

Fonte: Pesquisa Visível e invisível, fevereiro de 2019. Dados levantados em 12 meses


Para a segurança das passageiras, a 99 desenvolveu em parceria com a consultoria Think Eva um rastreador de comentários. A inteligência artificial identifica palavras e contextos sobre assédio nos comentários das avaliações e já registrou 87% das denúncias, ajudando a reduzir 23% das ocorrências dentro da plataforma, segundo a diretora de comunicação da 99, Pâmela Vaiano. No aplicativo há opções de compartilhamento de rotas, gravação de áudio, monitoramento de corridas via GPS e botão para ligar para a polícia.

Para Suzy Balloussier, todos devem se mobilizar. “O que pode ser aplicado em qualquer cidade do mundo é a mobilização da sociedade civil. Quando você testemunha um caso de assédio, é preciso se manifestar. É necessário que as pessoas se coloquem ao lado da vítima”, afirma.

A pesquisa Visível e Invisível, feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Instituto Datafolha, de fevereiro de 2019, aponta que 32,1% das mulheres que sofreram algum tipo de assédio nos últimos 12 meses receberam cantadas e comentários desrespeitosos quando estavam andando na rua.

 Ilustração para caderno de mobilidade urbana - Desafio das mulheres
Kleverson Mariano

Michele da Silva, 27, mora em Afogados da Ingazeira, município pernambucano de 37 mil habitantes. Ela conta que já passou por situações constrangedoras. “Sempre têm aqueles que assobiam e assediam com palavras nas ruas. É muita falta de respeito, mas eu nunca denunciei”, diz.

Ruas escuras são um outro fator de medo para as pedestres. O problema não é exclusivo das grandes cidades, mas há soluções de fácil execução. Em Afogados da Ingazeira, o programa Ilumina Afogados instalou lâmpadas de LED melhorando a iluminação nas ruas. A empregada doméstica Carla Patrícia, 28, afirma que agora se sente mais segura ao voltar do trabalho caminhando. “Ouço muitas denúncias no rádio e percebo que se uma mulher denuncia, outras se sentem estimuladas a vencer o receio”, diz.

Risolene Lima, coordenadora da Mulher de Afogados da Ingazeira, ressalta que a parte educativa e preventiva na comunidade é importante no combate ao assédio. “Ouvimos muitos relatos de assédio e damos orientação de como agir. As vítimas ainda têm muito medo de denunciar.”

Onde denunciar
Disque 180 Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência ou procure uma delegacia de Polícia Civil. Agressões físicas e sexuais devem ser denunciados de imediato e de forma presencial, para que sejam feitos exames e perícias, e responsabilizar judicialmente o responsável.


O conteúdo deste especial foi produzido pelos participantes do Lab 99+Folha de Mobilidade Urbana. Ao longo de dois meses, 30 estudantes do último ano do curso de jornalismo e recém-formados de 21 cidades do Brasil participaram de um programa que envolveu, além de palestras online com especialistas e profissionais da Folha, a elaboração de reportagens com diagnósticos e desafios da mobilidade em tempos de pandemia.

Devido ao risco de contágio pelo novo coronavírus, os integrantes do programa foram orientados a priorizar os canais digitais na produção dos seus trabalhos.

A iniciativa, fruto da parceria da Folha com a empresa de tecnologia em mobilidade urbana 99, busca contribuir para a formação e o aperfeiçoamento de profissionais voltados para a cobertura dessa que é uma das mais urgentes questões no dia a dia das cidades brasileiras. Dentre essas contribuições está a edição inédita do Manual de Jornalismo de Mobilidade Urbana Folha/99, com verbetes específicos sobre o tema.

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