Prefeitura de SP infla número atual de matrículas em creches com vagas do futuro

Servidores e especialistas apontam que mudança pode ser manobra; gestão Covas nega

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São Paulo

Desde o fim de setembro, a Prefeitura de São Paulo tem matriculado nas creches da rede municipal crianças que só ingressarão nas unidades no ano de 2021. A prática, apelidada de vaga virtual ou vaga X, tem sido criticada por servidores e especialistas, pois poderia configurar uma manobra para inflar o número de matrículas.

Em memorando enviado às DREs (Diretorias Regionais de Educação) no último dia 21 de setembro, ao qual a Folha teve acesso, a Secretaria Municipal da Educação informa que as crianças na fila da creche devem ter a matrícula efetuada ainda no ano de 2020.

O objetivo, segundo a gestão Bruno Covas (PSDB), seria garantir a estes alunos os mesmos benefícios dos demais que já fazem parte da rede, como “apoio pedagógico e proteção alimentar”.

As matrículas da rede municipal da educação são feitas pelo sistema EOL. Quando a escola notifica a abertura de uma vaga, automaticamente o sistema já sugere o nome do aluno que está na fila para efetivação dessa matrícula. Após a publicação do memorando, segundo funcionários de creches, o sistema sugeriu uma lista de nomes para cada unidade, sem que houvesse vagas disponíveis.

A nova determinação permite, por exemplo, que as creches já possam efetivar agora as matrículas de quem ingressará no Berçário 1 (ciclo inicial nas entidades infantis) em 2021, mesmo que essas vagas estejam ocupadas por outras crianças neste momento.

No ano que vem, com a movimentação natural da rede, os alunos migrariam para o Berçário 2 e só então essas vagas estariam disponíveis para serem preenchidas.

Servidores que trabalham nas diretorias de ensino e nos CEIs (Centro Educacional Infantil) sob gestão da prefeitura afirmam que a medida cria uma duplicidade no cadastro e apontam a prática como uma medida para ampliar o número de matrículas em creche e reduzir a fila do ensino infantil na capital. A gestão Bruno Covas (PSDB) nega que a mudança cause distorção nos números (leia mais abaixo).

Em junho deste ano, 22.732 crianças aguardavam vaga nas CEIs da cidade e 341.966 constavam como matriculadas, segundo dados da demanda escolar, divulgados pela prefeitura.

Em setembro de 2017, a prefeitura assinou um acordo com o Tribunal de Justiça em que se comprometeu a criar 85,5 mil vagas em creche até o fim de 2020. O compromisso foi firmado na Justiça em razão de duas ações civis públicas iniciadas em 2008 e 2010 por entidades de defesa do direito à educação.

Até o último levantamento, em junho deste ano, a gestão tucana havia criado 57.749 novas vagas em creches _sem contar as que estão em processo. A atualização desses dados somará as matrículas feitas até 30 de setembro e deve ser publicado nos próximos dias. No entanto, o prefeito Bruno Covas, que tenta a reeleição, divulgou em suas redes sociais no último dia 2 que havia criado 85 mil vagas em creche.

Para o professor de Políticas Públicas da UFABC (Universidade Federal do ABC) e membro do comitê de monitoramento das creches junto ao Tribunal de Justiça, Salomão Ximenes, a mudança no sistema de matrículas cria uma “contabilidade criativa” das vagas.

“A prefeitura se vale do atendimento não presencial das creches nesse momento de pandemia para falsear o cumprimento da meta firmado com o TJ [Tribunal de Justiça]. Em janeiro, esses números vão retroceder, porque essas vagas não existem”, explica. “Seria possível dar o cartão merenda e todo apoio a essas crianças da fila sem a necessidade de matriculá-las dessa maneira”, complementa.

Memorando enviado pela Secretaria Municipal da Educação às diretorias de educação da capital solicitando que elas matriculem ainda neste ano crianças que só ingressarão na rede em 2021. - Reprodução

No caso das creches conveniadas, que são contratadas pela prefeitura, as matrículas antecipadas podem causar, além da distorção dos números, desperdício de dinheiro público.

A Folha teve acesso a emails enviados pelas DREs para os gestores dessas unidades. As mensagens explicam que os alunos devem ser matriculados em 2020 e rematriculados em 2021. E como a remuneração dessas entidades também leva em conta a quantidade de vagas que ofertam, os contratos precisaram ser aditados ainda no exercício deste ano para contemplar os novos alunos.

No email encaminhado aos diretores de creches conveniadas da zona norte da capital, há uma lista com 54 unidades e a “proposta de aumento da capacidade ainda em 2020” com o número de vagas que cada uma terá a mais para efetivar matrículas neste ano. As entidades ainda são orientadas a “diante da urgência dos aditamentos” enviar a documentação até 24 de setembro.

Em busca no Diário Oficial do município, a Folha encontrou, entre os dias 26 de setembro e 3 de outubro, a publicação do aditamento de contrato de 38 creches dessa lista _todos em razão da ampliação da disponibilidade de vagas.

“Eu vejo com bastante preocupação essa criação virtual de vagas, pois o acordo entre a prefeitura e a Justiça prevê a disponibilidade de uma vaga real e concreta, e que observe os padrões de qualidade previstos para a rede. Não há como garantir que em 2021 será mantido o mesmo número de alunos por educador em sala de aula, por exemplo”, diz a advogada Alessandra Gotti, presidente executiva do Instituto Articule e que também integra o comitê que monitora as creches junto ao Tribunal de Justiça.

​Pressa

Entre funcionários de creches ouvidos pela Folha, o que também chamou a atenção na recomendação das DREs foi a urgência para a efetivação dessas matrículas.

“Informamos que após essas ações das unidades [matrículas], o setor de demanda irá efetivar as solicitações de transferências, de casos de irmãos, entre outros, a fim de possibilitar às famílias a permanência dos bebês e das crianças em unidade educacional mais próxima de sua residência”, diz trecho de e-mail encaminhado aos diretores de creches das regiões de Jaçanã e Tremembé, ambas na zona norte de SP.

Já em uma reunião por videoconferência feita com os diretores de creches da zona leste, ao qual a Folha teve acesso, a orientação é para que as crianças sejam matriculadas e, se não houver vaga em 2021 para todas, a diretoria se encarrega de garantir a transferência para outra unidade. "A gente precisa zerar essa fila", diz um dos diretores da DRE.

Prefeitura diz que reportagem distorce dados

A Prefeitura de São Paulo informou, por meio de nota, que a reportagem "insiste em distorcer a realidade dos pedidos de matrícula na cidade de São Paulo e tenta vincular esforço de gestão ao calendário eleitoral".

A gestão Bruno Covas ainda afirmou que zerou a fila da pré-escola e criou o maior número de creches municipais e afirma que a reportagem erra ao afirmar que a cidade "registrou exatamente no período anterior à eleição número exagerado de matrículas". O número de matrículas efetivadas entre julho e setembro será publicado nesta sexta (9) no Diário Oficial, segundo a nota, e "é compatível com o planejamento realizado pela Secretaria de Educação para o estrito cumprimento de acordo judicial que estabelece o compromisso de abertura de 85 mil novas vagas nessa gestão".

A Secretaria Municipal da Educação ainda informou que as vagas criadas são "reais e concretas" e cada aluno possui um cadastro e um código no sistema EOL, "que garante para esse estudante uma vaga real que será ocupada com a reabertura da escolas". Funcionários de creches e das diretorias de ensino ouvidos pela Folha, no entando, afirmam que o próprio sistema liberou os nomes para efetivação de matrículas para vagas físicas que só vão existir em 2021.

A prefeitura também nega que as novas matrículas geraram aumento de repasses às entidades que gerenciam creches e que os repasses estão congelados. "As matrículas viabilizadas garantem às novas crianças atendidas, acesso ao cartão alimentação, ao trilhas de aprendizagem e às aulas à distância", destaca a nota.

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