Vítimas sofrem duas vezes, pelo estupro e pelo 'promotor que faz piadinha', mostra livro

Jornalista Ana Paula Araújo lança título sobre cultura do estupro no Brasil

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Rio de Janeiro

"Obrigada a você que chegou até aqui. Sei que não foi fácil. As histórias aqui narradas são de deixar qualquer um passando mal", diz a jornalista Ana Paula Araújo, 48, no último capítulo de "Abuso - A Cultura do Estupro no Brasil".

É mesmo um desafio atravessar as páginas do livro que a apresentadora do Bom Dia Brasil (Globo) lança nesta segunda (5). Veja o caso que abre a obra, das quatro amigas que deixaram esfriando na geladeira o brigadeiro que prepararam para comer depois da pizza.

Antes de ter tempo de devorá-lo, elas foram agredidas, violentadas e jogadas de um penhasco de mais de dez metros de altura, em Castelo (PI). Todas entre 15 e 17 anos, haviam saído para tirar fotos num morro próximo. Lá encontraram o primeiro dos cinco estupradores —quatro adolescentes e o mentor, um homem de 40 anos.

"Nunca mais na minha vida deixei para comer nada depois", conta Jéssica, uma das mais de cem entrevistas que a autora fez ao longo de quatro anos para investigar um país que a cada 11 minutos sedia um estupro, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Mulher jovem de cabelos longos e blusa clara olha a câmara de perfil diante de fundo branco
A jornalista Ana Paula Araujo, 48, autora de "Abuso - A Cultura do Estupro no Brasil"” - Divulgação

As delegacias brasileiras registraram 47.461 casos de estupro em 2015, o ano em que Jéssica ganhou uma grande cicatriz na perna após ter sido arrastada por seus algozes, que a faz até hoje usar roupa comprida se está com o pai (para que ele não sofra com a lembrança do que a filha passou).

O número real de ocorrências é ainda maior, dada a histórica subnotificação. Estima-se que nove de cada dez pessoas violadas não denunciem. "É o único crime em que a vítima é que sente culpa e vergonha", diz Araújo.

Jéssica conta que não guarda rancor dos estupradores, mas confessa "um pequeno sentimento ruim". Um dia, chegando da escola, um promotor ligou. Perguntou: "‘E vocês foram lá realmente só pra tirar foto?' Nunca me esqueci daquele tom dele."

O padrão se repetiu na pesquisa de Araújo. "Algumas pessoas têm menos raiva do estuprador do que das instituições que falharam com elas", diz à Folha. "O promotor que fez piadinha, a juíza que deu sentença absurda."

Esse segundo caso é uma referência à magistrada que estranhou o depoimento de uma mulher que dizia ter sido estuprada porque, em sua opinião, ela narrou o episódio de forma muito fria.

"A própria firmeza da jovem foi usada contra ela", afirma a jornalista. "A mim, pareceu que a vítima é que foi julgada o tempo todo, e não o acusado." Inocentado pela tal magistrada, o sujeito acabou condenado pela segunda instância.

Teve ainda o delegado que, diante de uma adolescente de 16 anos alvo de um estupro coletivo, perguntou se ela costumava participar desse tipo de “encontro” e se gostava.

Esse caso, de 2016, ficou famoso após ser divulgado pelos próprios estupradores em vídeo que circulou no WhatsApp: a jovem desacordada, vozes masculinas ao fundo dizendo coisas como "essa aí mais de trinta engravido [sic]".

A jornalista lembra no livro que a barbárie é poliglota. Da Índia vem o caso da universitária estuprada por seis homens num ônibus e arremessada para fora do veículo. Morreu duas semanas depois.

Da Argentina, uma das histórias mais dolorosas: uma jovem de 16 anos drogada, violentada e empalada até a morte por cinco homens que, após o crime, limparam seu corpo e o entregaram ao hospital, alegando que ela teve uma overdose. "Segundo a promotoria, Lucía sentiu tanta dor que teve uma parada cardíaca."

O tema, diz Araújo, era inescapável. "Faz parte da vida de todas nós, mulheres." Ela inclusa. Num capítulo, conta como, aos 18 anos, voltando da faculdade tarde da noite, conseguiu um assento na última fila do ônibus, "encostadinha na janela", o que a fez pensar: “Que sorte! Hoje vou encostar a cabeça na janela e dormir um pouquinho!”.

No meio do trajeto, acordou com uma mão em sua coxa e um rosto quase colado ao seu, que lhe disse: “Boa noite”. A lei que define importunação sexual (ato libidinoso contra alguém sem consentimento, como passar a mão em parte íntima) só foi aprovada anos depois, em 2018.

A maioria dos nomes da obra é trocada para preservar o anonimato das vítimas. Fora o dela própria, Araújo só reconhece pelo nome verdadeiro a atriz Giselle Itié e o humorista Marcelo Adnet. Os dois já haviam falado publicamente sobre abusos sexuais que sofreram.

O estuprador de Itié foi o próprio namorado, que numa boate batizou seu suco de laranja com alguma substância. "Ela só se lembra de ter acordado no dia seguinte nua e com dor na região genital. Ficou confusa, até entender que havia sido drogada e violentada e, com isso, perdido a virgindade. O namorado, também sem roupa, nem mesmo tentou negar o que havia acontecido."

Outro relato que impressionou a autora: uma mulher molestada pelo próprio marido. "Tinha uma gravidez de risco, não podia sexo com penetração. Lutou com ele com todas as forças, teve um sangramento absurdo."

De tantas histórias tenebrosas que ouviu, algumas vezes narradas pelos próprios estupradores, Araújo diz que um pequeno alento foi topar com mulheres que não se deixaram ser definidas pela tragédia. "Este é um trauma impossível de ser apagado, mas toda nossa vida é narrada por experiências, a pior delas não tem que ser a mais decisiva."

Em 2019, a apresentadora teve notícias de Jéssica, do Piauí. "Ela entrou para a faculdade de Serviço Social, trocou de namorado, casou-se, estava feliz com a primeira gravidez e voltou a morar em Castelo."

A jovem chegou a cruzar na rua com um dos criminosos que a violentou. “Eu o vi de passagem, mas Deus me deu o grande dom do perdão", ela afirma no livro de Araújo. "Olhei para ele e não senti mais nada."

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