Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Dez anos depois, ideia de que Alemão foi ocupado sem tiros ignora mortos

Imagens da polícia entrando na comunidade ofuscam dias de guerra antes de uma das maiores operações do RJ

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Rio de Janeiro

Uma década se passou e a narrativa que ficou sobre uma das maiores operações policiais da história do Rio de Janeiro foi a de que o Estado ocupou o Complexo do Alemão, classificado como o bastião do Comando Vermelho, quase sem trocar tiros naquele domingo quente de novembro de 2010.

Os ao menos 37 mortos contabilizados nos dias anteriores e subsequentes na região, porém, não entram nessa conta. Todo dia, a Polícia Militar soltava um balanço das operações, computando os corpos sem nome junto às armas e drogas levadas ao quartel.

Um deles era o do segurança Rogério Costa Cavalcante, 34, atingido na barriga na frente das câmeras. Tratado como bandido no discurso oficial da época, ele tinha os bolsos cheios de convites para a festa de um ano do único filho.

Outros foram a adolescente Rosângela Barbosa Alves, 14, atingida por um tiro nas costas enquanto estudava dentro de casa, na frente do computador. E a dona de casa Janaína Romualdo dos Santos, 43, e um idoso, todos mortos nos confrontos daquela semana.

A crise começou no domingo anterior, quando bandidos incendiaram dezenas de carros e ônibus, metralharam cabines da polícia e provocaram arrastões e tiroteios principalmente em bairros das zonas sul, norte e oeste da capital e na região metropolitana.

O então governador Sérgio Cabral (hoje preso) acabara de ser reeleito, e a inteligência da polícia descobriu que os ataques eram uma reação do Comando Vermelho à política das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que vinha obrigando os traficantes a migrarem de suas comunidades.

Na quarta-feira, dia 24, os sargentos Guilherme e Luís (os nomes são fictícios a pedido deles) foram escalados na folga para voltar ao Bope (Batalhão de Operações Especiais) e ajudar na invasão do Complexo da Penha, vizinho ao Alemão. Naquele dia, com muito tiroteio, as equipes tomaram duas regiões: Chatuba e Morro da Fé.

“Na verdade a tomada do Alemão não foi no que chamaram de ‘Dia D', no domingo, 28, quando a imprensa estava toda lá. As coisas aconteceram antes, quarta, quinta e sexta”, diz Guilherme.

Naquela manhã, a comerciante Emília Martins, 56, já tinha sido alertada pelos traficantes para tomar cuidado porque eles tentariam explodir um caveirão perto da sua loja, na entrada da favela. “É hoje que a gente vai morrer”, pensou com a cunhada.

“Não tinha ninguém na rua. E tome tiro, tome bomba, caveirão pra cima e pra baixo, e a gente abaixada. Eu tremia muito, cada bomba que eles jogavam caía um montão de terra na cabeça da gente”, conta ela enquanto atende os clientes —muitas lojas da rua foram destruídas pelos blindados e nunca mais abriram, a sua foi a única intacta.

Ela diz que o veículo passou em chamas e que logo depois ouviu um vizinho gritar “socorro, socorro”. Era um homem do qual ela não se lembra o nome que estava sentado na porta, foi baleado na barriga e levado ao hospital, mas morreu certo tempo depois.

No dia seguinte, quinta-feira, ocorreu a ocupação do resto do complexo. A cúpula da Segurança já havia conseguido pegar emprestado seis blindados M113 da Marinha, até hoje citados como o grande trunfo da operação. Com esteiras em vez de pneus, eles amassaram como papelão os ferros e veículos transformados em barricadas nas favelas.

Assim, os agentes do Bope não precisaram deixara proteção dos veículos para retirar as barreiras, como normalmente acontece. A tática surpreendeu os bandidos, que se desesperaram e fugiram a pé ou amontoados em motos e carros por uma pista de terra, em uma imagem imortalizada pelo helicóptero da TV Globo.

“Teve muita morte de vagabundo nesse dia. Tentamos cercar todas as saídas, mas o complexo é muito grande, não tem efetivo para isso tudo. Mesmo assim, ainda conseguimos dar uma boa baixa naqueles marginais, pela ajuda da Marinha”, responde Luiz com a naturalidade de um policial que trabalha no Rio de Janeiro há 15 anos.

A filmagem ao vivo da fuga na mata, sem som, mostra os bandidos armados tentando desviar de tiros. O livro “Liberdade para o Alemão: O Resgate de Canudos”, escrito pelo então comandante-geral da PM, coronel Mário Sérgio Duarte, explica a imagem.

“Alguns pareciam feridos e eram arrastados [...]. Outros tropeçavam em meio à fuga, alvejados por disparos de mais de 20 Caveiras que, orientados pelas imagens da televisão, lá da Chatuba assestaram suas armas para aqueles lados, a cerca de 1,5 km, e mandaram bala por cima das construções da favela, despencando como flechas de filme épico exatamente onde fugiam”, diz um trecho.

É guerra, justificam os PMs do Bope, então não tem como saber quem morreu ou não. “Você não vai voltar para um lugar para ver se tem vagabundo morto. Você vai voltar se tem algum inocente. Vagabundo ninguém tá nem aí”, diz Luís.

O próximo “bunker” do Comando Vermelho a ser tomado era o Alemão, cercado pelas forças de segurança havia dias. Na sexta, começou a pressão para que o fundador do Afroreggae, José Júnior, mediasse a rendição dos bandidos que tinham se escondido ali e evitar um banho de sangue.

Ele foi no sábado, apesar de uma carta apreendida na prisão que revelava uma ordem do CV para matá-lo. “Passou essa imagem no mundo inteiro. Você me vê subindo, eu estou com 15 pessoas em volta. Eu olho pra trás, 10 pessoas. Depois, 7. Quando chego lá em cima só tem eu e mais dois.” Eram cerca de 200 traficantes, com armas jogadas no chão.

“Meu papel foi entrar na mente deles. Eu disse: é uma situação kamikaze, só que os kamikazes matavam outros kamikazes. Vocês vão morrer, inocentes vão morrer, policiais vão morrer, e a sociedade vai apoiar essa carnificina. Se tivesse um plebiscito, ia ser ‘entrem e matem’”, descreve.

Aquela noite foi longa para o ex-traficante Jean, 55, que naquela semana decidira sair do Jacarezinho e ficar no “quartel-general” porque imaginava que ali a polícia não entraria. “Foi um clima muito pesado. Eu vi uns 200 jovens desesperados sem saber o que fazer. Não tinha outro jeito, ou encarava ou se entregava”, conta sob condição de anonimato.

Com mais de 2.500 policiais e militares posicionados em volta das 13 favelas do complexo, eles decidiram não encarar. Muitos fugiram no meio da população ou por um túnel, outros foram presos, alguns se entregaram e poucos revidaram. “Até sábado tinha uma decisão coletiva, mas domingo foi cada um por si”, diz Jean, que conseguiu escapar se misturando a uma passeata com o filho. ​


Apreensões nas primeiras horas de ocupação

  • 30 toneladas de maconha, 418 quilos de cocaína e 161 quilos de crack
  • 169 fuzis e 39 metralhadoras
  • 215 pistolas e 77 revólveres
  • 300 motos e 50 carros
  • 5.017 ligações ao Disque-Denúncia em uma semana (foram 2.151 no ano anterior)

Ele acusa a polícia de ter provocado muitas mortes. “Enterraram muita gente na mata, amigo meu mesmo. E não foi um ou dois, não. Não foi menos de dez. No domingo mesmo, depois de algumas horas, eu soube que [os policiais] já começaram a fazer arruaça lá dentro”, afirma.

Os corpos que teriam ficado na mata sem que policiais permitissem a aproximação de parentes é uma das denúncias que os moradores fazem desde aquela época. Mas essa não é a única em uma operação que desperta lembranças fortes.

Outras foram a truculência nas abordagens, traficantes que teriam fugido em veículos da própria polícia, e a chamada divisão do “espólio de guerra”, com agentes pegando para si armas e drogas apreendidas dos bandidos. Outro boato é que moradores que deram informações à polícia, os “X9”, teriam morrido a facadas quando os traficantes voltaram.

A dupla do Bope rebate que isso são histórias, “folclore”. “Em algumas eu acredito, em outras não. Não tem como saber o que aconteceu em outros lugares, o que posso dizer é que na minha equipe não aconteceu”, diz Guilherme.

Dez anos depois, todos os lados têm o mesmo sentimento com relação à ocupação: frustração. Os equipamentos públicos, projetos sociais e empresas que entraram na comunidade após a “pacificação” saíram, e traficantes e fuzis se multiplicaram.

“Há muita insanidade. Uma pessoa normal vai pensar: o que vai adiantar eu entrar ali? Nada”, reconhece o sargento Luís. “Mas temos o ego, a vaidade. Nossa cabeça funciona assim: se a gente recuar, o que o bandido vai pensar? É o mesmo ego que eles têm, e essa guerra continua, não vai ter fim nunca.”

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