Descrição de chapéu Obituário André Luis Porto da Silva (1990 - 2020)

Mortes: Um jovem matemático que batalhava contra a estatística

André desviou do padrão toda a vida

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São Paulo

O André morreu três dias antes de completar 30 anos, três anos depois de ter vencido um câncer.

Procuro nessas coincidências de números algum sentido para dar conta do que aconteceu, mas ele próprio, um matemático, me diz em uma de suas reflexões: “Abandone isso, esqueça de querer achar razão onde não há. Não somos especiais, não somos eternos, não há Deus na razão. O verdadeiro Deus está na contradição.”

O André sempre batalhou contra fórmulas e estatísticas. Foi um menino tímido que cativou aos montes, um escoteiro exemplar e um maluco nas festas.

André na rede com uma de suas gatas
André Porto na rede com sua gata - Acervo Pessoal

Era o 1º da sala e o 11º “projétil” do “estilingue humano” —justamente aquele em que o óbvio problema da brincadeira resolveu dar as caras, depois de deixar outros dez moleques impunes.

Listar o ranking com as top 5 quase mortes do André era tradição nos encontros de amigos de infância (o câncer em 2017 nem sequer figurava entre as três primeiras).

Fez graduação, mestrado e doutorado em matemática, mas trafegava tão bem entre as letras quanto entre os números. Pintava, desenhava, tocava guitarra e era um mais ou menos discreto louco dos gatos.

Perdeu os pais cedo. A mãe para o câncer, o pai, para a tristeza, dizem. As tias também morreram da doença. André provou o padrão errado uma vez, mas não duas.

Havia uma espécie de maldição sempre a rondar. Talvez por isso ele pensasse muito sobre a morte, mas, acima de tudo, sobre a vida. “Quando e onde e como me acabo?”, ele se pergunta em um dos textos que publicou em suas redes sociais nos últimos meses.

Como bom matemático, o problema não fica sem resposta. Em outra reflexão, ele escreve:

“Sim, sou mera vida simples: ‘e ela findará’. E como poderia ser muito mais feliz e satisfeito se essa ideia me esquecesse assim como a esqueço. Mas ela me acompanha, talvez por natureza, e me aterroriza e me tira os sonhos e me faz acordar. É por isso que eu sou, eu vou, eu faço, eu quero, eu busco, eu penso, eu posso: há tempo. Não há tempo para todo o tempo, mas há tempo entre todo o tempo, em que posso ser, ir, fazer, querer, buscar, pensar, poder.”

Houve tempo. Em seus últimos dias, sabendo do fim que o aguardava, não desistiu em nenhum momento de sentir e fazer sentir. Lançou um enigma mesmo intubado: conseguiu soletrar “Zagallo”. Fez a irmã, Carol, rir quando percebeu que ele tentava dizer “vocês vão ter que me engolir”.

(Como diz Vinicius, um de seus melhores amigos, ele complicava as coisas simples e simplificava as complicadas —além de ser um contumaz praticante de piadas ruins.)

Compartilhou com sua esposa, Letícia, com quem construía uma vida, uma última música: “Three Little Birds”, de Bob Marley. A mesma que amigos e familiares cantaram para se despedir, no último sábado (14). Contra todas as estatísticas, dissemos em coro: “Every little thing is gonna be alright.”

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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