Sistema falha, e Rio apela para o Judiciário contra letalidade policial

Com falta de controle do Executivo, Legislativo e Ministério Público, Justiça é acionada para regular segurança pública

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Operação da Polícia Militar, na favela do Jacarezinho, zona norte do Rio, depois de intensa troca de tiros no dia 19 de outubro. Na foto, policias abordam carro suspeito atingido por uma bala perdida durante o confronto Tércio Teixeira/Folhapress

Rio de Janeiro

“O policial porta a arma, mas quem aperta o gatilho é o Estado”, discursou o então deputado estadual Wanderson Nogueira (hoje PDT) depois de ouvir o depoimento de mães de jovens mortos por agentes.

Era o final de 2015, quando o Rio de Janeiro acumulava cerca de 600 óbitos por intervenção policial. Quatro anos depois do discurso na CPI dos Autos de Resistência (Comissão Parlamentar de Inquérito), o número subiu para 1.814.

Parte dos motivos que impulsionam a estatística constava no relatório da comissão: há falhas nos órgãos de controle da segurança pública e inclusive na Assembleia Legislativa que produziu o documento, nunca votado em plenário.

É comum que deputados não fiscalizem, governo não controle, investigadores apurem mal, promotores arquivem processos e júris não punam.

Diante dessas brechas, a Justiça passou a ser acionada nos últimos anos não apenas para julgar casos pontuais, mas para intervir e evitar excessos das corporações fluminenses.

“O RJ tem um controle do Judiciário na segurança que é muito mais evidente do que em outros estados. Mas ele só é mais ativo porque é provocado, porque a questão é muito grave”, diz a advogada Isabel Figueiredo, consultora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e ex-diretora da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

Caso mais recente e emblemático foi o do STF (Supremo Tribunal Federal), procurado por entidades da sociedade civil diante da constância de operações durante a pandemia. Em junho, a Corte limitou as incursões em favelas a situações excepcionais e com comunicação ao Ministério Público, fazendo despencar o número de mortes por policiais.

Outra sentença do tipo foi emitida em 2017, quando o governo foi submetido a uma canetada da Justiça estadual. Uma decisão liminar proibiu operações no Complexo da Maré em horário escolar e obrigou a presença de ambulâncias e de câmeras nas viaturas —exigências nem sempre cumpridas.

No ano passado, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) ainda reconheceu como ilegal um mandado de busca “coletivo, genérico e indiscriminado” que havia sido realizado na favela do Jacarezinho dois anos antes, anulando as apreensões e prisões que resultaram dele.

“A judicialização das políticas de segurança é um fenômeno recente. Sempre foi mais comum em outros temas, como saúde, educação e questões penitenciárias”, cita o defensor público Daniel Lozoya, que é subcoordenador do núcleo de direitos humanos e atuou nos dois últimos casos.

Para ele, a interferência do Judiciário é “mais do que justificada” em questões pontuais, quando há omissão ou violação frequente de direitos pelo Estado. É o chamado "controle de legalidade", reitera o juiz criminal Felipe Gonçalves, presidente da Amaerj (Associação de Magistrados do RJ).

Há quem discorde. “Quem tem a prerrogativa de decidir a importância da operação é o corpo técnico das polícias, os secretários e o governador. Se a operação é ruim, eles têm que ser cobrados depois, e não a priori”, argumenta Emmanuel Nunes, coordenador de segurança do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da USP.

Mas ele enfatiza que, quando as mortes por agentes ultrapassam a marca de mil vítimas em um único ano, como acontece no Rio há três anos seguidos, é sinal de que o descontrole é sistêmico.

Essa falha começa com os deputados, que de maneira geral resistem em legislar contra os excessos policiais e têm pouca iniciativa quando se trata de fiscalizá-los.

“O Legislativo pode atuar em duas frentes: estabelecer normas e controlar o comportamento do Executivo, como chamar o governador e os secretários para se explicar, mas é pouco proativo, como se fosse responsabilidade única do Executivo”, diz Nunes.

O deputado estadual Carlos Minc (PSB), que atua na área desde seu primeiro mandato na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio), em 1987, acha que há interesse no tema, “mas ao contrário”. “Hoje temos 13 deputados de linha dura, que só legislam sobre polícia e fazem centenas de projetos, mas são corporativos e aumentam o descontrole”, opina.

Um exemplo é um projeto de lei que quer anistiar ex-policiais militares expulsos pela corporação de 2007 a 2018 e depois absolvidos pela Justiça, alguns deles supostamente ligados a milícias. A própria PM se manifestou contra o texto, que foi aprovado em primeira votação.

O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL), que atuou na Alerj de 2007 a 2018 e foi relator da CPI dos Autos de Resistência, avalia que a situação piorou desde então: “Nossas recomendações não foram cumpridas, e o relatório final nunca foi votado em plenário”.

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), à época deputado estadual, foi o único de 48 deputados que votou contra a abertura da comissão.

Minc comemora a aprovação recente de uma lei sua que tramitou por cinco anos, a qual estabelece procedimentos para quando houver feridos ou mortos em ações policiais e prevê acompanhamento psicológico e capacitação ao agente que se envolver em mais de uma ocorrência com morte em um ano. Mas ressalva que “mais difícil do que fazer uma boa lei é fazer ela ser cumprida”.

É aí que entra o Executivo e o “tripé da letalidade policial”, assim definido por Figueiredo: formação insuficiente, policiais sem direitos e equipamentos adequados, e pouco controle da tropa —ela descreve a ouvidoria da PM do Rio como "inexistente" e a corregedoria como pouco imparcial, comandada por oficiais que podem voltar ao comando dos batalhões.

Em setembro, o RJTV, da Rede Globo, mostrou que ao menos 67 PMs condenados pela Justiça ainda trabalhavam na corporação. Em 2017, um levantamento do jornal O Globo mostrou que apenas 20 policiais tiveram participação em 356 mortes em supostos confrontos de 2010 a 2015, e 15 deles continuavam na ativa.

As declarações das autoridades também têm impacto, aponta estudo do pesquisador Emmanuel Nunes. Segundo ele, quando um secretário linha dura assume, os índices aumentam em poucas semanas. Já quando um legalista assume o cargo, os índices demoram meses para cair.

Há, ainda, o Executivo federal, lembra a socióloga Jacqueline Sinhoretto, da diretoria do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).

“Nos anos 2000 o governo federal fez vários planos na área da segurança pública, em que financiava programas e cobrava a redução de indicadores. Hoje não há plano, e o dinheiro é repassado sem qualquer contrapartida dos estados”, afirma.

Pesquisadores apontam ainda um gargalo no trabalho da Polícia Civil para investigar as mortes. Apesar de serem, em tese, homicídios mais fáceis de serem resolvidos —afinal, já se sabe quem estava envolvido—, as investigações têm uma série de falhas.

Segundo o relatório da CPI dos Autos de Resistência, elas começam com a prática frequente dos PMs de remover a vítima (muitas vezes já morta) para hospitais, sob pretexto de prestar socorro, e passam pela falta de perícia no local.

“Para refazer o fato e entender se a ação foi ou não legítima, eu preciso que a polícia investigativa esteja no local. Mas não são muitos os casos em que ela é chamada [pela delegacia]”, diz a promotora Andrea Amin, coordenadora do Gaesp, grupo do Ministério Público especializado em casos de mortes por intervenção policial.

“Tem local que não dá para fazer a perícia, porque você não vai conseguir chegar. Vai acabar voltando com outra morte por intervenção”, diz o delegado Marcelo Carregosa, que trabalhou na Delegacia de Homicídios da capital. Moradores, porém, afirmam que muitas vezes eles mesmos preservam os locais e colhem provas.

Outro grande problema nesses casos é a falta de testemunhas, por ausência ou medo, e a versão única dos policiais. “Muitas mães que eu ouvi aqui no MP falaram: doutora, a senhora foi a primeira autoridade que me ouviu, que quis saber do meu filho”, conta Amin.

Já no IML (Instituto Médico Legal), o médico legista faz a necropsia sem saber a dinâmica do fato, já que não há laudo de local, o que dificulta a compreensão dos indícios deixados no corpo. Uma perita conta que, quando o cadáver chega, eles não sabem sequer se foi caso de intervenção policial.

Segundo ela, um exame essencial nesses casos é o residuográfico, que indica se há pólvora nas mãos do morto. Mas ele não é rotina. Quando ocorre, a coleta é feita no instituto após o transporte do corpo (que apaga vestígios) com algodão, em vez dos adesivos plásticos adequados.

A promotora Amin, porém, ressalta que a qualidade dos inquéritos vem melhorando após a criação, em 2016, de um núcleo na Divisão de Homicídios da capital para investigar exclusivamente as mortes por intervenção policial. A reportagem pediu à Polícia Civil para visitar o núcleo, mas não teve resposta.

Mesmo assim, sete em cada dez investigações de mortes por policiais continuam sem conclusão após dois anos, segundo os dados mais recentes do ISP (Instituto de Segurança Pública), que consideram inquéritos instaurados no primeiro semestre de 2018.

Com apurações frágeis, são poucos os casos que resultam em denúncias. Essa é a justificativa usada pelo Ministério Público para o baixo número de acusações contra agentes públicos. Pesquisadores e juristas, porém, questionam se o papel da Promotoria de exercer o controle externo da atividade policial está sendo cumprido.

“As investigações são mal feitas. E aí deve-se arquivar? Não, o MP tem que devolver o inquérito e dizer: faltou ouvir fulano, faltou tal documento, tal prova. Acaba sendo um acordo tácito”, critica a advogada Isabel Figueiredo.

Ao limitar as operações policiais, o STF também fez cobranças ao Ministério Público. Determinou que o órgão seja o principal responsável por apurar mortes por policiais suspeitas, ouça familiares das vítimas e crie um plantão para receber denúncias do tipo.

Questionado, o MP-RJ não respondeu quantas vezes cobrou justificativas das polícias para as 154 comunicações de incursões que recebeu desde a decisão do STF,em junho, até o início de outubro.

“Algumas promotorias, como SP e RJ, têm grupos especializados em mortes por policiais, mas são minoritários, com poucos promotores para o estado todo que atuam apenas nos casos mais gritantes e não dão conta dos casos diários”, afirma Sinhoretto, do IBCCRIM.

O grupo do Rio, coordenado por Amin e formado por 14 promotores e peritos, ofereceu 58 denúncias contra policiais desde sua criação, em 2016, sendo que nesse período o estado acumulou mais de 6.200 mortes por intervenção. Nenhuma das denúncias foi a júri até agora.

Os poucos casos que chegam nessa fase passam por entraves no Judiciário. Segundo a promotora, nos primeiros anos do Gaesp, era comum que a Justiça recusasse as acusações contra policiais, seguindo a lógica de que “o estado vive uma guerra”. Depois, uma parte começou a ser aceita, e hoje todas são recebidas.

Juristas concordam que a responsabilidade do juiz na impunidade é menor, já que ele só pode agir depois de provocado. Além disso, esses casos são definidos por um tribunal do júri, mas citam um “último recurso” que ele tem para evitar arquivamentos injustos. É o artigo 28 do Código de Processo Penal.

Esse trecho permite que o magistrado rejeite um pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público e o encaminhe ao procurador-geral de Justiça, para que ele decida se insiste no arquivamento, se oferece a denúncia ou se muda de promotor. Mas a possibilidade é pouco usada.

Já na fase do julgamento, o relatório da CPI chama atenção para dois fatos que refletem a não punição do policial.

Um deles é que raramente um agente é preso provisoriamente, o que afasta testemunhas.O outro é que, nos tribunais, tanto a defesa quanto a acusação tendem a se concentrar no caráter da vítima, em vez de se aterem às circunstâncias do homicídio. O que está em discussão, portanto, é se o morto era mesmo criminoso, e não se houve excesso na ação policial.

Um último fator estreita ainda mais o funil dos excessos policiais a punir: a sociedade. Amin lembra o caso de um jovem morto no Morro da Providência, no centro carioca, por um PM que confundiu seu celular com uma arma.

“O promotor tinha sobreviventes, testemunhas, um vídeo da morte e o depoimento mentiroso do policial. Pensou: tribunal do júri bom. O placar foi quase empatado. Ou seja, a sociedade quer condenar o policial? Ou acha aceitável aquele comportamento?"

Colaborou Italo Nogueira  |  Esta reportagem contou com apoio da Conectas Direitos Humanos. A série “Rio na Mira” mostra o histórico da violência policial no Rio, os efeitos da restrição a operações pelo STF, as histórias das mães de vítimas, a rotina dos agentes e o papel do Executivo, Legislativo e Judiciário no problema, além de discutir outros modelos de segurança pública. Os textos serão publicados ao longo de outubro e novembro.

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