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Brasil acordou para crimes raciais em 2020, mas pouco mudou

Apesar de espaço no debate público, indicadores de violência continuam a ter negros como maiores vítimas

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São Paulo

Quanto mais forte é a opressão, maior é a reação. Essa teoria talvez explique as respostas aos atos de racismo em 2020 no Brasil.

Mas no ano em que parece que o país acordou para a desigualdade racial, em protestos, nas urnas, na imprensa e nas redes sociais, os negros seguiram, mesmo em meio a pandemia, como os maiores alvos dos assassinatos, da letalidade policial, do encarceramento, do desemprego, da pobreza e do coronavírus.

Dessa vez, no entanto, as imagens de brutalidade parecem ter causado maior impacto, como o espancamento de Beto Freitas no Carrefour em Porto Alegre na véspera do Dia da Consciência Negra.

A cidade elegia pela primeira vez na história cinco vereadores negros (quatro deles mulheres). A ideia era comemorar o feito no 20 de novembro. Mas acabou por ser uma data de dor e protesto, com milhares nas ruas pelo país.

Um mês depois da morte, no entanto, um ato esvaziado lembrava o crime. Tinha umas 50 pessoas, entre familiares, amigos próximos, vizinhos e ativistas. O supermercado seguia aberto, cheio de clientes —alguns chegaram a xingar o grupo, com gritos de "vão trabalhar, vagabundos".

"Quando acontece, todo mundo se manifesta. Depois, voltam ao mesmo estabelecimento. A gente dizia: 'você sabe que está indo comprar sua ceia de Natal num lugar onde há 30 dias uma pessoa foi espancada até a morte, né?'", diz a ativista gaúcha Winnie Bueno.

Se o assassinato de George Floyd, nos EUA, fez muitos despertarem para o debate racial em 2020, o movimento negro nunca dormiu, afirma ela.

"Desde os meus 16 anos acompanho os esforços para denunciar violência e desigualdade. Isso nunca esteve silenciado para parte significativa da população negra", diz Bueno, aos 32.

Mulher segura retrato de adolescente de beca, na formatura, olhando com pesar
Ana Paula Rocha segura retrato do filho, Igor Rocha Ramos, 16, morto em abril por um PM em São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

"É inegável que esse ano houve lampejos de empatia, com famosos se colocando no debate antirracista. Mas foram ações pontuais e episódicas, não estruturais."

E o racismo é mais do que uma ofensa ou um crime, afirma Amanda Pimentel, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

"É a distribuição desigual de bens materiais, da educação, das oportunidades de trabalho entre negros e brancos até classificar determinados comportamentos como indicativos de criminalidade, colocando toda uma raça como suspeita."

É que preto parado é suspeito, correndo é culpado.

Foi o que aconteceu com Igor Rocha Ramos, 16, em abril. O adolescente ia à padaria quando foi abordado por policiais próximo de onde morava, no Jardim São Savério, periferia da zona sul da capital paulista. Assustado, ele correu e levou um único tiro, na nuca.

O policial, branco, argumentou que Igor estava armado, mas ele tinha só o celular na mão. O adolescente era ameaçado pelo agente, desde que cumpriu medida socioeducativa por roubo e foi liberado, conta a mãe, Ana Paula Rocha, 45.

"Ele começou a fazer curso e a trabalhar como jovem aprendiz. Tava ganhando o dinheirinho dele, mudou muito. Mas quando viu que era aquele policial, se desesperou e saiu correndo", diz a cobradora de ônibus que criava quatro filhos com o salário de R$ 1.600. O agente não foi preso e continua patrulhando próximo da casa da família.

Igor sonhava em trabalhar num banco. "Ele achava o máximo aquelas roupas engravatadas, blazer", relembra a mãe, que vê racismo no episódio.

"Eles [os policiais] só chamavam meu filho de 'neguinho' nas abordagens, sempre violentas. Nunca era rapaz, moleque, menino. Também não vejo abordar os grupinhos de brancos", diz.

"O perfil das vítimas de violência não muda, continua sendo o jovem, negro e pobre", afirma Pimentel. Entre as crianças e adolescentes mortos pela polícia no país, 69% são negras.

É a mesma cor de 74% do total de vítimas de crimes letais. Estatística que tende a se agravar com a flexibilização da posse e porte de arma de fogo, segundo a pesquisadora. "A maioria dos homicídios usam esse instrumento", diz.

O movimento negro agora briga para que a matança de negros seja classificada como genocídio. "Temos que chamar pelo que é. Não dá pra fingir que não tem viés racial e que não há uma morte sistemática da população negra", diz Pablo Nunes, do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania).

Já a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio tem feito campanha pelo afastamento de policiais acusados de assassinatos em São Paulo.

"Os policiais continuam onde cometeram o crime e ameaçam os familiares e amigos da vítima. Só são afastados se tiver denúncia e forem condenados. Mas como vai ter denúncia se não pode falar? As pessoas vivem sob a égide do medo", diz a psicóloga Marisa Feffermann, que acompanha casos de letalidade policial pela Rede.

Também são pretos e pardos os policiais que mais morrem. "O Brasil é um dos países onde mais se mata policiais e 65% dos praças [soldados, cabos, sargentos e subtenentes] são negros. A questão racial afeta internamente", afirma Pimentel.

No Congresso, estão em jogo projetos de lei que podem aprofundar ainda mais esse fosso, como a redução da maioridade penal e o excludente de ilicitude.

Já na política de drogas, mudanças legislativas têm "precarizado a vida dos usuários, em sua maioria negros", afirma Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra Por uma Nova Política de Drogas.

O governo federal tem incentivado a abstinência e este ano inflou em 95% o repasse de verbas para comunidades terapêuticas, controladas por entidades católicas e evangélicas, em detrimento de uma política de redução de danos e do sistema público de saúde.

A pandemia também evidenciou o abismo racial. Em São Paulo, por exemplo, a mortalidade do coronavírus é 60% maior entre negros.

Embora o mito da democracia racial à brasileira tenha começado a ser derrubado, todos os ouvidos pela Folha consideram que os avanços são tímidos.

"É fundamental que a onda se materialize em estratégias mais perenes, como aplicação de leis, consolidação de normativas", diz Nunes.

Nas eleições municipais deste ano houve aumento de negros e negras eleitos, mas, apesar das cotas, eles ainda correspondem a um número pequeno do total de vereadores e prefeitos —homens e brancos prevalecem.

Houve reação também em campo. No futebol, jogadores que nunca apontaram situações de preconceito resolveram se posicionar.

"O racismo sempre existiu, mas velado, em forma de brincadeira, e foi naturalizado. Esse ano, com o protagonismo do movimento negro, jogadores tiveram a compreensão do problema", afirma Danilo Pássaro, integrante da Gaviões da Fiel, torcida organizada do Corinthians.

No esporte, os brasileiros também seguiram o exemplo dos americanos. Jogadores da NBA chegaram a se recusar a jogar após casos de violência policial. No início de dezembro, Neymar se posicionou pela primeira vez após uma ofensa racista do árbitro de uma partida da Champions League. As duas equipes decidiram se retirar de campo em decisão histórica.

Para Pássaro, no entanto, os tribunais desportivos ainda não estão agindo de forma contundente. “Tinha que ter punição firme para servir de exemplo. Os atletas têm medo de prejudicar suas carreiras".

Ele organizou os protestos das torcidas organizadas contra o racismo e a favor da democracia na capital paulista em junho. “Enquanto houver racismo estrutural não há democracia de fato, social, participativa, financeira, econômica”, diz ele.

Para Winnie, não dá para falar em avanço enquanto o país vê aumentar o número de pessoas sem ter o que comer.

"Queria dizer que a gente avançou no numero de crianças negras que sobreviveram à desnutrição, ampliou o número de negros que saíram da miséria e da pobreza, que temos menos gente em condição de trabalho precário, análogo à escravidão", afirma.

"Mas só vimos aumentar. Quanto mais acirrada for a violência, maior será a luta."

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