“A vida é uma estrada que você não sabe nem onde começa nem onde termina”, diz Ary Coelho da Silva, conhecido como seu Ary, que completa 100 anos exatamente hoje, 19 de dezembro.
Essa estrada centenária —que fez dele químico, jornalista, professor e ativista político— pode ser contada a partir dos trilhos ferroviários que ligavam Minas Gerais ao Rio de Janeiro na década de 1930.
A bordo do trem, o menino de 11 anos distribuía, para quem pedisse, doces feitos por sua mãe. Eram provavelmente lembranças para o seu avô, com quem morava no Rio, mas ele preferia compartilhar com os estranhos que conhecia no caminho.
Nascido no Rio de Janeiro, Ary visitava Matipó (MG) durante as férias escolares. O patriarca, um português rígido, acolheu Ary e bancou os estudos dele. De dez irmãos, só cinco sobreviveram à primeira infância. “Chega de morrer neto”, dizia o avô. E, assim, Ary, o sobrevivente mais velho, foi o único a nascer no Rio, para escapar do destino dos irmãos.
O avô o criava como um “patinho feio” entre os primos da capital fluminense, fazendo questão de lembrar o menino que seu pai não podia pagar os boletos da escola. Mas Ary gostava de estudar e aprendeu a se virar sozinho.
Ao terminar o ensino médio, decidiu se juntar às Forças Armadas. Até então, ganhava dinheiro dando aulas particulares de física e matemática. Para ele, havia uma dupla atração em servir ao Exército na Segunda Guerra Mundial: melhorar sua condição de vida e combater os nazistas.
Estava tudo acertado. Partiria do Rio para Natal, onde faria o treinamento militar, e de lá para a Itália. Contudo, ao comunicar sua decisão ao pai de um aluno, um general do Exército, os planos mudaram.
O oficial queria que o jovem continuasse o trabalho de professor particular e, então, mudou sua rota. Ary serviu no Forte de Copacabana, onde se esperava um ataque marítimo dos alemães, que nunca ocorreu.
No pós-guerra, depois de ser dispensado do Exército, a dedicação às aulas e as boas notas lhe garantiram a aprovação no Instituto de Química Agrícola do Rio. Enquanto estudava, conseguiu seu primeiro emprego formal em uma usina de álcool, no final dos anos 1940.
A experiência universitária também fez aflorar algo que já estava em Ary: o gosto pela literatura e pela política, o que o levou a se filiar ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Ele não queria se tornar um “agroboy” e negou a oferta de sociedade na usina. Partiu, então, com sua esposa e filhos para Niterói, preferindo se dedicar ao trabalho no PCB da cidade.
Para Ary, “o amor é uma atmosfera, é a única força que mantém as pessoas juntas”. Essa força ele conheceu com Oswaldina Coelho da Silva (1911-2007), com quem se casou em 1945. Para ela (e com ela), Ary escreveu uma vida de cartas e poemas. Dos vidros de remédios de Oswaldina, ele fazia esculturas.
Ela perdeu os pais ainda criança, aos 7 anos, ambos vítimas da pandemia da gripe espanhola. Criada sem afeto por uma tia que não a deixava estudar, Oswaldina cresceu católica e devota de São José. E, no entanto, apaixonou-se pelo comunista ateu Ary Coelho.
Quando ele a pediu em casamento, ela chorou e disse que não podia aceitar, pois havia mentido a idade —era 9 anos mais velha. Mas Ary não se importava com a diferença e, no mais, ninguém precisava saber disso. Só em 1984 as filhas do casal, Maria Heloísa e Sônia Maria, descobriram a verdadeira idade da mãe.
Para sustentar a família, Ary manteve três empregos entre as décadas de 1940 e 1960. De manhã, dava aulas de física em um liceu de Niterói; à tarde, trabalhava no Instituto de Química Agrícola; à noite, escrevia editoriais para o jornal Diário Carioca.
Na metade dos anos 1960, surgiu nova oportunidade: dar aulas de química na Universidade de Brasília. Mas após o golpe de 1964 e o recrudescimento da ditadura militar com o AI-5, em 1968, o professor teve sua cadeira na universidade cassada.
Embora o PCB estivesse na clandestinidade imposta pela ditadura, Ary continuou a cultivar seu ativismo político, fosse em reuniões escondidas, fosse por meio do exercício da profissão de jornalista.
Por seu ativismo, ele chegou a ser levado a delegacia para interrogatório. Por sorte, chegou lá durante uma troca de turnos. O sargento que aguardava se irritou com o atraso do outro e acabou liberando Ary.
Aos netos e netas, ele tem legado, além dos ideais políticos, a paixão pela arte e pela poesia. E também ensinou que “endurecer a alma e o coração nunca é resposta para nada”, como afirma sua neta, a fotógrafa Raquel Moliterno.
Outro neto de Ary, o publicitário Eco Moliterno tem aprendido nessa convivência a enxergar o lado bom de envelhecer. Foi o avô químico quem lhe ensinou que tudo se transforma a cada fase.
Atualmente, Ary começa a ler os jornais durante o café da manhã, atividade que se estende, às vezes, até o horário do almoço.
Apesar da memória recente falhar vez ou outra, lembra bem a estrada que percorria. Quando está de bom humor, gosta de cantarolar marchinhas de Carnaval e contar as histórias do menino que distribuía doces no trem.
Ary Coelho da Silva, 100
Nascido no Rio de Janeiro (RJ), formou-se no Instituto de Química Agrícola do Rio de Janeiro. Além do trabalho como químico, foi também professor e jornalista. Manteve por décadas atividade política no PCB (Partido Comunista Brasileiro).
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