Documentário faz retrato íntimo e dilacerante de caso de violência policial

'Sem Descanso', do francês Bernard Attal, faz pontes entre racismo e letalidade no Brasil e nos EUA

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São Paulo

"Aqui já sabe como é que é, né?" É com esse lamento que o avô de Geovane Mascarenhas de Santana expressa sua desesperança de encontrar o neto vivo.

O "aqui" se refere à periferia de Salvador, na Bahia, mas se aplica a várias outras favelas e periferias do Brasil. O "como" diz respeito à violência com que a polícia age nesses territórios.

No dia 2 de agosto de 2014, o jovem negro de 22 anos foi abordado com sua moto por duas viaturas policiais no meio da tarde no bairro de Calçada, na capital baiana.

As imagens de câmeras de vigilância registraram a abordagem com agressões e humilhação antes de os policiais colocarem Geovane dentro da viatura enquanto um dos oficiais da PM conduz a moto do rapaz na mesma direção.

A cena registrada em vídeo foi a última vez que Geovane foi visto com vida.

Cena do documentário "Sem Descanso", de Bernard Attal
Os avós de Geovane em cena do documentário "Sem Descanso", de Bernard Attal - Divulgação

Seu desaparecimento depois da abordagem policial e a busca do pai, Jurandy Silva, por notícias do filho são o principal objeto do documentário "Sem Descanso", de Bernard Attal, que estreou na semana passada em plataformas digitais.

O diretor francês radicado no Brasil acompanha os 15 dias de angústia e desalento, mas também de luta de Jurandir para localizar Geovane, filho que criou sozinho.

Foi ele quem descobriu o vídeo com o registro da abordagem e o levou à Corregedoria da PM baiana, entre visitas inquisidoras a delegacias, esperançosas a hospitais e outras, resignadas, ao Instituto Médico Legal.

Jurandy ouviu de policiais que, como o filho tinha passagem pela polícia, poderia estar fazendo algo errado no ato da abordagem, como se um crime pelo qual já havia pago legitimar a tortura e a morte.

Certo de que o destino de Geovane era obra dos policiais que o abordaram, Jurandy procurou jornalistas para uma denúncia, que ganhou a primeira página de jornais do estado e o noticiário televisivo local.

A atenção midiática conseguiu evitar que o caso caísse no anonimato. Em 2019, mais de 6.300 pessoas foram mortas pelas polícias no Brasil.

Procurados, nem a Polícia Militar nem a Polícia Civil ou a Secretaria de Segurança Pública da Bahia responderam aos questionamentos feitos pelo diretor Attal.

Partes carbonizadas do corpo de Geovane foram encontradas em diferentes pontos da cidade. A tatuagem com o nome do pai, que o rapaz trazia no dorso, havia sido removida numa tentativa de acobertamento.

As investigações apontaram para o envolvimento de 11 policiais militares na morte de Geovane, que deixou mulher e filho. Sete foram indiciados. O caso ainda não foi a julgamento.

No filme, Jurandy diz que nunca maginara tamanha dor, pela qual passam tantas mães de jovens negros e pobres mortos por policiais no Brasil.

Attal faz uma ponte entre a letalidade policial brasileira e a norte-americana, que há anos vem gerando levantes do movimento negro e antirracista em torno do slogan Black Lives Matter.

Num salto, o filme vai do caso brasileiro para as ruas dos Estados Unidos e mostra como, mesmo antes do assassinato de George Floyd, em 2020, a situação já era insustentável.

Contemplar realidades tão complexas e distintas como a brasileira e a norte-americana juntas, no entanto, enfraquece as duas pontas da narrativa. As semelhanças ficam evidentes, mas não as diferenças, essenciais para a compreensão dos resultados de parte a parte.

O documentário rodou festivais e recebeu diversos prêmios, como o de filme de impacto social e defesa dos direitos humanos do Doc Society/Doc SP.

Expõe o racismo e a injustiça que matam e castigam as populações mais vulneráveis no Brasil e nos EUA, e faz um retrato íntimo e dilacerante da dor de um pai.

Ao mesmo tempo, o apontamento de uma esperança e de um chamado a partir da força mobilizadora dos movimentos sociais em torno do tema.

'Sem Descanso' ('Relentless')

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