Me tiraram coisas simples da vida, diz vítima de cerveja contaminada, um ano depois

Atingidos por síndrome convivem com limitações como perda auditiva e paralisias

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Belo Horizonte

Morando a uma distância de 1 km em linha reta, uma da outra, no bairro Buritis, um dos mais populosos de Belo Horizonte, Camila Massardi Demartini, 30, e Flávia Schayer, 49, não se conheciam até janeiro de 2020. Enquanto as duas tinham os maridos internados com uma doença tratada como misteriosa até então, seus caminhos se cruzaram.

Luiz Felippe Teles Ribeiro, 38, marido de Camila, e Cristiano Mauro Assis, 48, marido de Flávia, foram internados no final de 2019 com sintomas semelhantes, afetando os rins e causando paralisia no corpo. O contato entre as mulheres ajudou a identificar a cerveja consumida pelos dois, a Belorizontina, da marca Backer, como origem do problema.

Segundo inquérito da Polícia Civil, que indiciou 11 pessoas, apresentado em junho, foi constatada a contaminação da cerveja por monoetilenoglicol e dietilenoglicol durante o processo de produção, líquidos usados para refrigerar, que são tóxicos e causam síndrome nefroneural.

“Uma coisa que eu nunca esperava e que mudou toda a minha vida”, diz Felippe. Com implante coclear para poder ouvir e paralisia facial, que impede que faça expressões, ele pediu que a entrevista à Folha fosse feita por vídeo para fazer leitura labial durante as perguntas.

“Eu quase morri no hospital”, diz ele. “Eles me tiraram coisas simples da vida, que é fazer um café, fechar uma torneira, encher um balão, pegar um copo, caminhar, correr, fazer um churrasco, que eu adorava. Eu tenho infinitas limitações hoje de coisas simples do dia a dia. Sem falar no meu sogro”.

O sogro dele, pai de Camila, Paschoal Demartini Filho, 55, morreu poucos dias depois de ser internado, também em decorrência da intoxicação pela cerveja consumida no fim de ano pela família. A necropsia feita nos rins dele indicou a presença do contaminante dietilenoglicol.

“[Beber a cerveja] não era nada ilícito, arriscado ou perigoso, era um lazer que a gente estava tentando e, por falta de responsabilidade mesmo, porque se você coloca qualquer coisa no mercado ou presta serviços, tem que saber dos riscos que aquilo ali pode acarretar”, diz Camila. “Eu olho para trás e não sei se teria forças para passar por tudo isso de novo.”

Felippe deixou o hospital em 19 de maio, mas precisou de dois meses em casa para conseguir se movimentar dentro dela. O pai, que morava no Espírito Santo, alugou um apartamento em Belo Horizonte para estar mais perto do filho e passar os dias dando apoio a ele.

O marido de Flávia, Cristiano, saiu do hospital no dia 6 de março —internado desde 23 de dezembro de 2019, ele ficou 44 dias só no CTI. Durante o ano, teve que voltar a ser internado quatro vezes, uma delas para receber o rim doado pela esposa.

Ele conta que ficou consciente quase todo o tempo em que esteve no hospital, mas que tentava concentrar sua energia em tentar diminuir a dor forte que sentia toda vez que respirava, tentando movimentar os membros e na interação com a família.

“Eu gastei muito da minha consciência nessas coisas, me afastei de qualquer outro pensamento. Eu estava muito ciente da minha situação, que eu poderia ficar muito ruim”, lembra ele.

Professor do departamento de psicologia da UFMG, ele seguiu com a produção científica, apesar de todas as sequelas que ainda enfrenta. “Eu estou falando com você, já está doendo. Sabe quando vai desgastando?”, disse ele após cerca de 40 minutos de entrevista.

Depois do transplante, com imunidade mais baixa e pelos riscos da pandemia do novo coronavírus, ele tem evitado contato com outras pessoas e parou as sessões de fono e fisioterapia. Além das sequelas no rosto, Cristiano, que praticava exercícios físicos com frequência, conta que tem pouca sensibilidade nos pés, como pacientes com diabetes, e se sente fraco. Flávia buscou todo tipo de tratamento para o marido, inclusive na medicina alternativa.

“A equipe que o atendia se emocionou muito com a determinação dele. O tempo todo, ele queria ir além e continuar, mesmo com dor”, diz ela. “Como grau de envenenamento dele foi muito forte, porque ele consumiu a cerveja ao longo de quase um mês, o médico fala que ele só sobreviveu pela capacidade que ele tinha antes, por ser saudável, fazer atividades e cuidar da alimentação.”

A Backer passou de cervejaria premiada a um processo que lista pelo menos 29 vítimas pela intoxicação, em menos de um ano. Pelo menos dez pessoas morreram. A reportagem tentou contato com a empresa através do telefone comercial, email e pelo advogado, por diversas vezes, mas não obteve retorno.

Em agosto, o Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) apresentou um relatório e disse que a contaminação identificada é inédita em alimentos no Brasil. Segundo a pasta, a Backer “adotou práticas irresponsáveis ao utilizar líquidos refrigerantes tóxicos de forma deliberada em seu estabelecimento”, no lugar de substâncias atóxicas.

O documento confirma a presença de monoetilenoglicol e dietilenoglicol em cervejas da Backer, apontando que ocorriam contaminações desde janeiro de 2019 e afastando a possibilidade de que fosse um evento isolado. O Ministério Público de Minas Gerais disse na denúncia que a contaminação ocorria desde 2018.

No começo de outubro, o juiz Haroldo André Toscano de Oliveira, da 2ª Vara Criminal de Belo Horizonte, recebeu a denúncia contra 11 pessoas, entre eles sócios e funcionários da cervejaria.

Três sócios-proprietários por envolvimento na adulteração de bebidas alcoólicas, perigo comum e crimes previstos no Código de Defesa do Consumidor, sete engenheiros/técnicos pelos crimes de lesão corporal grave e gravíssima, homicídio culposo, além dos mesmos crimes imputados aos sócios, e uma pessoa por prestar informações falsas na fase do inquérito policial. Três engenheiros ainda foram denunciados por exercerem a profissão sem registro no Conselho de Química e Engenharia.

A madrasta de Christiani Assis, Maria Augusta de Campos Cordeiro, 60, a quem ela considerava como sua mãe, morreu no dia 28 de dezembro de 2019, menos de 48 horas depois de ser internada com quadro da síndrome nefroneural. Ela diz que a família não teve nenhum apoio ou nem recebeu contato da cervejaria.

"A desesperança é enorme, pelo menos para a minha família. Cremos numa Justiça, mas quanto tempo depois e a qual preço isso sairá, só Deus sabe", diz ela.

A cervejaria contratou recentemente uma câmara especializada em mediação e conciliação, credenciada junto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, para tratar dos acordos com as vítimas. A câmara diz ser imparcial no processo e que não pode passar detalhes sobre o caso e os acordos devido à confidencialidade.

Luciano Guilherme de Barros, 57, é uma das vítimas que trata de um acordo pela câmara. Um ano depois de ter sido internado com a síndrome nefroneural, ele ainda tem a rotina marcada pelas sequelas —no final de novembro, passou por mais uma cirurgia, dessa vez para retirada de hérnia no abdômen.

Os rins dele têm hoje 28% de capacidade, ele usa aparelho auditivo, teve lesão nos olhos, passa por sessões de fisioterapia e fonoaudiologia e conta que ainda tem dificuldade para caminhar e a respiração fica ofegante se tenta fazer algum exercício mais forte.

“Hoje vivo uma outra vida, outra chance. Foram exatos 180 dias no Hospital, sendo 65 dias no CTI”, diz ele. Pelo menos o Natal, que ele passou internado no hospital há um ano, agora, será em casa. "Vamos ficar em casa, eu, minha mulher e meu filho. Morro de medo, de ser contaminado pela Covid, devido ao meu quadro de saúde atual."

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