Vigilantes são o dobro do efetivo total das polícias no Brasil e estão se armando mais

Segurança privada tem denúncias de uso abusivo de força, mercado clandestino, 'bico' de policiais, agentes donos de empresas e falta de fiscalização

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São Paulo

O Brasil tem mais de 1 milhão de vigilantes, o dobro do efetivo das polícias militar, civil e federal de todos os estados que, somados, é de 531 mil agentes. E as empresas de segurança privada estão se armando mais.

Do total de vigilantes aptos a exercer a função, 51% estão formalmente inativos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Mas isso não significa que não estejam trabalhando, já que o setor é marcado por informalidade.

Mesmo que se considere o total de vigilantes oficialmente empregados, o número (565 mil) supera o dos agentes da segurança pública. O efetivo das Forças Armadas —Exército, Marinha e Aeronáutica— também é diminuto se feita essa comparação: 380 mil pessoas.

Dessa conta ainda estão excluídos os vigilantes clandestinos. Estima-se que,​ para cada vigilante legal, existam três clandestinos, segundo a Abcfav (Associação Brasileira de Cursos de Formação e Aperfeiçoamento de Vigilantes).

Para ser um profissional da segurança privada, é necessário realizar o curso de formação de vigilante em uma das quase 300 escolas aprovadas pela PF no país. Há opções entre R$ 493 a R$ 935 na capital paulista, para cursar as 200 horas de aula, com disciplinas como a de relações humanas no trabalho, primeiros socorros, direito, direitos humanos e uso progressivo da força.

Uma lei obriga que o vigilante retorne a cada dois anos à sala de aula para uma reciclagem.
O perfil do vigilante é um homem (só 9% são mulheres), com ensino médio completo (71%) e idade entre 30 e 49 anos (69%). Em São Paulo, um vigilante armado ganha, em média, um salário de R$ 1.600 a R$ 2.300.

No primeiro semestre deste ano, estavam autorizadas a funcionar 4.618 empresas em todos os segmentos da segurança privada (patrimonial, pessoal, de escolta e de transporte de valores). Elas movimentam cerca de R$ 37 milhões em receita bruta.

Essas firmas têm registrado mais armas de fogo. Em 2019, o país tinha 198.052 registros no nome delas. Em todo aquele ano, foram registradas 8.853 novas armas letais. Entre janeiro e junho deste ano, o número era praticamente igual: 8.844 novas armas na mão dos vigilantes.

A compra de munições está estável, mas a transferência de munição entre as empresas disparou: foram 142.445 em todo o ano passado, e 178.115 nos primeiros seis meses deste ano, segundo o Anuário.

A maior concentração é no Sudeste, onde estão alocados 49% dos vigilantes do país. Quase um terço do total está em São Paulo (167 mil).

Entre as irregularidades comuns no setor estão empresas não autorizadas vendendo serviço de segurança, policiais fazendo "bicos" ou como sócios de negócios do ramo, denúncias de mortes, torturas, discriminação e uso abusivo de força.

Essa relação estreita entre as seguranças pública e privada é bem explicitada com o caso de João Alberto Silveira Freitas, 40, conhecido como Beto Freitas, o homem negro espancado até a morte em um Carrefour de Porto Alegre por dois seguranças —um deles era PM temporário e não tinha Carteira Nacional de Vigilante.
Os dois eram funcionários do Grupo Vector, que tem em seu quadro societário dois policiais militares e um policial civil, como mostrou a Folha.

Segundo a Constituição Federal, em seu artigo 37, funcionários públicos, como policiais militares, são proibidos de acumularem cargos remunerados —como chefiar ou comandar áreas em empresas de segurança.

O Código Penal Militar também proíbe o oficial da ativa de "comerciar ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial ou dela ser sócio ou participar". Além disso, o artigo 13 do Regulamento Disciplinar da PM paulista proíbe que o militar da ativa tenha sociedades com fins lucrativos.

De acordo com a Polícia Federal, a Vector havia sido fiscalizada em agosto de 2020, e não foram encontradas irregularidades.

Em nota, o Grupo Vector informou que todos os seus funcionários, como os que mataram Beto Freitas, receberam "treinamento adequado inerente as suas atividades, especialmente quanto à prática do respeito às diversidades, dignidade humana, garantias legais, liberdade de pensamento, ideologia política, bem como à diversidade racial e étnica".

A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo abriu uma investigação para apurar a suspeita de que os policiais sócios do grupo infringiram a norma.

IRREGULARIDADE ESTIMULADA

A prática de policiais atuarem na segurança privada é comum, segundo o tenente-coronel aposentado da PM de SP e doutor em psicologia, com tese sobre a corporação, Adilson Paes de Souza.
"Existe, é tolerada e estimulada. A maioria das pessoas sabe quando o policial exerce o 'bico' de segurança, informal e irregular, ou é dono de uma empresa de segurança. Mas é tolerado porque é a forma de aumentar o rendimento mensal. E isso auxilia na diminuição da pressão por melhores salários. É uma válvula de escape", diz Paes de Souza.

Para ele, no entanto, há um claro conflito de interesses. "Para o encarregado de prover a segurança de determinados estabelecimentos ou áreas, quanto pior a segurança pública está, maior é o lucro. É uma equação simples: se melhorar a segurança pública, diminui a demanda da segurança privada", afirma.

A atividade paralela atrapalha o momento de folga dos agentes, em que deveriam estar se recuperando do policiamento exaustivo e estressante. Além disso, policiais se tornam muito mais vulneráveis quando realizam segurança particular —agentes morrem mais fora de serviço do que exercendo a atividade policial.

Presidente da Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores, Jeferson Furlan Nazário rebate a ideia de que a segurança privada cresce com o aumento da violência.

"Isso é uma falácia. Entre 2017 e 2019, os delitos contra o patrimônio e contra a vida caíram e, mesmo assim, a quantidade de vigilantes manteve certa estabilidade", escreveu, no Anuário. Desde 2017, o número de autorizações de funcionamento também está estável.

Em nota, Furlan disse que a clandestinidade retira a possibilidade de que mais vigilantes devidamente regularizados estejam empregados e que cerca de 70 mil perderam seus postos de trabalho desde 2015.

Segundo ele, o que motivou o aumento de transferência de munições foi que muitas empresas têm sido obrigadas a fechar as portas com a crise econômica dos últimos anos, agravada pela pandemia.

A segurança privada é a atividade voltada à vigilância e defesa do patrimônio ou segurança física de pessoas, de forma armada ou desarmada, e surgiu no Brasil durante a ditadura militar, no fim dos anos 1960. A primeira legislação sobre o assunto é de 1969, que estabeleceu que os bancos deveriam fazer uso obrigatório do serviço, em função do aumento de assaltos.

Inicialmente, a atividade era controlada pelas secretarias estaduais de Segurança Pública, mas com o aumento da demanda, o governo federal fez uma nova regulamentação em 1983. A autorização, o controle e a fiscalização passaram a ser função do Ministério da Justiça, através da Polícia Federal, o que vigora até hoje.

Especialistas, no entanto, concordam que o efetivo da PF é insuficiente para fiscalizar o setor.

"Os vigilantes são o maior contingente armado do país. E quem controla essa formação? A seleção dos alunos? A qualidade dos instrutores? O treinamento? Os valores que são passados?", questiona Paes de Souza.

"A Polícia Federal não tem condições e nem pessoal suficiente para desempenhar esse papel. São poucos os recursos para responsabilizar empresas cujos funcionários tenham cometidos abusos. Também não pode multar ou criminalizar serviços irregulares, pois não há previsão legal para isso no país", escreveu Cleber da Silva Lopes, professor e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança da Universidade Estadual de Londrina, no blog Faces da Violência.

Para os casos de abusos cometidos por seguranças regulares, as regras existentes não preveem nenhum tipo de sanção às empresas e contratantes.

Paes de Souza critica o que chama de formação militarizada desses profissionais. "Você vê a postura, o fardamento, como se comportam e percebe que eles são formados como tropas militares, na estética do guerreiro, de impor medo. Não precisamos de guerreiros nem de militares atuando na segurança privada."​

Há uma década, tramita no Congresso um Estatuto da Segurança Privada, que pretende atualizar a regulamentação do setor. O texto reúne dezenas de projetos de lei que tratavam do tema. Aprovado em 2016 na Câmara dos Deputados, está em análise pelo Senado desde então.

Se aprovado, vai criminalizar quem contrata e quem oferece serviço de segurança privada clandestina, criar regras para o setor da segurança eletrônica e aumentar a pena para crimes de roubo, furto e dano a carros-fortes e cometidos contra os vigilantes.

Procurada, a PF não respondeu os questionamentos da Folha.

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