Arquiteta do novo Pacaembu não tem registro profissional no país

Mexicana residente em SP, Sol Camacho diz que só fez consultoria; consórcio afirma que responsável técnico é outro

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São Paulo

​Sol Camacho Dávalos é formada em arquitetura e urbanismo pela universidade Iberoamericana, no México, onde nasceu em 1981, com passagem pela École d'Architecture Paris-Val de Seine. Tem mestrado pela Universidade Harvard, nos EUA.

Entre os títulos que conquistou, porém, falta um essencial no Brasil: o registro no Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), sem o qual não é permitido o exercício da profissão no país, onde mora desde 2011.

Seu nome acompanha todas as imagens até agora difundidas do novo Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, que desde 2020 e por 35 anos está concedido à empresa Allegra Pacaembu, responsável por reformá-lo e mantê-lo em troca da exploração comercial do espaço.

A arquiteta afirmou em nota à Folha ter sido responsável pela “pesquisa histórica que fundamentou a conceituação do projeto de modernização e restauro do Complexo Pacaembu” e por “apresentá-lo aos órgãos de defesa do patrimônio histórico estadual e municipal”.

O consórcio diz que o responsável técnico pelo projeto de modernização e restauro do complexo é o arquiteto Rafael Carneiro Bastos de Carvalho, que tem registro profissional no CAU desde 2006.

Para obter o registro, é preciso ser diplomado por uma instituição reconhecida. No caso de um arquiteto formado no exterior, o primeiro passo é validar o diploma no Ministério da Educação.

Uma universidade pública brasileira deve, para isso, verificar se a formação equivale à de um curso nacional, podendo exigir que o profissional curse disciplinas ou faça provas para obter a validação.

Sol Camacho não deu entrevista para esta reportagem, manifestando-se somente por meio de nota, mas, segundo a Folha apurou, foi ainda na validação do diploma que o processo emperrou.

Ela precisaria cursar várias disciplinas para obter a equivalência e, no ano passado, tentava solucionar o impasse pleiteando submeter-se a provas, mas a pandemia brecou a tentativa.

Sol Camacho em evento no Instituto Lina Bo e P. M. Bardi; é uma mulher branca, de cabelos lisos na altura dos ombros, que usa uma blusa bege com uma estampa preta no peito esquerdo; ela está em meio a árvores em um jardim
Sol Camacho em evento no Instituto Lina Bo e P. M. Bardi - Mathilde Missioneiro - 8.dez.19/Folhapress

Assim como um bacharel em direito precisa da carteira da OAB para advogar e um médico, do CRM para clinicar, é indispensável ao arquiteto e urbanista o registro no CAU.

O CAU nacional e seus braços estaduais foram criados pela lei nº 12.378 de 31 de dezembro de 2010, que regulamenta o exercício da profissão no país. Antes disso, o arquiteto formado tinha de ter registro no Crea, que regula engenheiros e agrônomos.

O primeiro passo para as obras do novo Pacaembu é a demolição manual do tobogã, arquibancada que tomou o lugar da concha acústica que fazia parte do projeto original.

Atualmente, porém, a demolição está impedida. A Justiça a barrou no último dia 7 a remoção, com base no argumento de que o tombamento do estádio não exclui o tobogã. Cabe recurso.

No lugar do tobogã, deve nascer o projeto divulgado sob o nome de Sol Camacho e de seu escritório, Raddar (Research as Design, Design as Research): um edifício, com lojas, restaurantes, centro de eventos e estacionamento, e uma esplanada voltada para o gramado.

Os desenhos que apresentam essa ideia foram defendidos por Camacho perante o conselho de patrimônio municipal, o Conpresp, e estadual, Condephaat —o Pacaembu é tombado nas duas instâncias, e qualquer alteração no conjunto requer autorização dos órgãos.

No Condephaat, há pendências. O órgão informa que “o processo foi indeferido por motivos de adequação do projeto”. Um pedido de reconsideração de decisão foi apresentado ao órgão e está em análise pelo representante do Instituto de Engenharia, que pediu vistas em 14 de dezembro.

Ainda segundo o órgão responsável de patrimônio, “o projeto de reforma está sob a coordenação da arquiteta Sol Camacho”.

A Folha consultou o CAU sobre a atuação de Sol Camacho no país.

O conselho informou que no início de 2020, o Raddar foi autuado e multado pela equipe de fiscalização e, em seguida, solicitou registro como pessoa jurídica.

Segundo o CAU, “os prazos para manifestação das partes no processo de fiscalização ficaram suspensos” devido à pandemia.

“Por outro lado, como não houve solicitação de registro como pessoa física, a profissional será notificada para regularização da situação.”

O conselho disse ainda que uma equipe analisa o envolvimento e a atuação da profissional na modernização e restauro do Pacaembu.

“Caso seja confirmado que ela exerceu atividades de arquitetura e urbanismo (previstas na resolução CAU/BR no. 21/2012) sem possuir o devido registro, medidas cabíveis no âmbito do conselho serão tomadas, bem como possível representação junto ao Ministério Público —seguindo recomendações legais.”

Ainda segundo a manifestação enviada por Camacho à reportagem, “não há qualquer irregularidade ou ilegalidade” na atuação no Pacaembu “ou nas consultorias prestadas para outros clientes pelo escritório, para as quais não se exige registro no Conselho de Arquitetura e Urbanismo”.

Não é o que estabelece a norma citada na resposta do CAU à Folha.

A resolução 21/2012 do CAU tipifica os “serviços de arquitetura e urbanismo para efeito de registro de responsabilidade, acervo técnico e celebração de contratos de exercício profissional”.

O texto lista “assistência técnica, assessoria e consultoria” entre as atribuições profissionais do arquiteto e urbanista.

A arquiteta fundou o Raddar em 2014, com sedes em São Paulo e na Cidade do México. Segundo diz sua nota, atua “na área de consultoria, não assinando nenhum projeto na qualidade de arquiteta”.

Na nota enviada à reportagem, Camacho destaca ainda suas atividades de curadora de exposições e projetos como o pavilhão brasileiro na 16ª Exposição Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza.

Suas qualidades têm sido reconhecidas em bolsas e prêmios. Um deles foi o segundo lugar entre os projetos latino-americanos de 2017 no concurso da fundação LafargeHolcim, da multinacional suíça de materiais de construção.

Em artigo publicado pela fundação em 2018, Camacho dizia que a construção do projeto premiado, um centro comunitário em Paraisópolis (Pipa - Projeto Integrado Paraisópolis Avança), tinha encontrado entraves burocráticos e que ela tinha tido de se limitar a erguer no local estruturas temporárias.

Na descrição do Pipa no site da fundação, ela aparece como autora principal do projeto, ao lado de seu marido, o investidor Jonathan Franklin.

O projeto do Pipa foi retirado do índice de trabalhos do Raddar em seu site. No mesmo índice, ao lado de uma foto do Pacaembu, a descrição que se lê é “pesquisa e assessoria”. Ao clicar na foto, o visitante cai numa página de erro.

Essas mudanças foram verificadas após os questionamentos da Folha.

Em dezembro, a página do projeto do Pacaembu no site o definia como “reúso adaptativo”, e Camacho constava como autora à frente de uma equipe de seis arquitetas, além de estagiários.

“O projeto investe na reforma das instalações de infraestrutura e na atualização da oferta de usos e programas para continuar recebendo um segmento populacional amplo e diverso”, dizia o texto na página.

“Quanto à arquitetura, o projeto apresenta duas intervenções fundamentais: a reabilitação das edificações existentes e a inserção de uma nova edificação. Para isso, as diretrizes do projeto arquitetônico consideram um entendimento integral do complexo e sua situação dentro do bairro e da cidade.”

Apesar de ter sido Camacho quem respondeu pelo projeto durante todo o processo de aprovação prévio à execução, o pedido de alvará foi protocolado na prefeitura em nome de Rafael Carneiro Bastos de Carvalho, em agosto do ano passado.

Questionada a esse respeito, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (Smul) afirmou que o nome de Sol Camacho Dávalos não consta no processo em análise pela Smul e que o responsável técnico é Bastos de Carvalho.

Bastos de Carvalho tem cargo diretivo na Allegra Pacaembu e é membro do conselho da Progen, empresa de engenharia de Eduardo Barella, acionista da concessionária ao lado do fundo de investimentos Savona. A Progen aparecia como responsável pela engenharia na página retirada do ar no site do Raddar.

O arquiteto graduou-se em 2005 pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mas, conforme seus currículos na ferramenta Ache um Arquiteto do CAU e na rede social Linkedin, sua experiência profissional se baseia no ramo executivo.

Tem certificados de especialização em finanças da Universidade de Navarra e da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base.

Ao longo da carreira, participou do desenvolvimento de concessões e parcerias público-privadas do setor de infraestrutura, atuando em grandes empresas, como OAS e Grupo Galvão.

O nome de Bastos de Carvalho não foi mencionado à Folha no contato inicial feito com a Allegra Pacaembu para esta reportagem. A assessoria da concessionária ofereceu fazer a ponte com a arquiteta Sol Camacho para falar da obra, quando ela tivesse início.

No requerimento de alvará, ao qual a Folha teve acesso, Bastos de Carvalho aparece como autor e responsável pelo projeto, mas os dados de contato são do escritório MGM Arquitetura.

Marcos Gusmão Matheus, proprietário do escritório, disse à Folha que seu escritório foi contratado “para prestar consultoria e assessoria na obtenção do alvará de aprovação e execução da reforma do complexo do Pacaembu”.

Matheus estima que metade dos serviços de seu escritório hoje sejam desse tipo.

Outro lado

Segundo a Allegra Pacaembu, além de ter Sol Camacho como consultora e Rafael Carneiro Bastos de Carvalho como responsável técnico, o projeto foi desenvolvido “com o trabalho de engenheiros e arquitetos da Progen”.

A empresa diz que Bastos de Carvalho “supervisionou todas as etapas dos estudos técnicos do projeto de restauro e modernização do complexo, fundamentado em minuciosa pesquisa realizada pelo escritório de consultoria em design urbano Raddar”.

“Além da pesquisa histórica do Complexo, o escritório Raddar também foi contratado para prestar assessoria no desenvolvimento conceitual do empreendimento e para apresentar o projeto junto ao Conpresp e Condephaat”.

A concessionária afirma que "o desenvolvimento conceitual de projetos de arquitetura por profissionais estrangeiros é algo comum no mercado".

Cita como exemplo o Museu do Amanhã, projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, "mas responsabilidade técnica de profissional da concessionária Porto Novo". Calatrava não tem escritório estabelecido no Brasil.

A empresa conclui dizendo que “em resumo, não há nada de irregular no projeto de restauro e modernização do Pacaembu, nem na atuação da empresa Raddar, representada pela arquiteta mexicana Sol Camacho”.


Cronologia do estádio

27.abr.1940 Inauguração do estádio, projeto do escritório de Ramos de Azevedo

1958 Passa a se chamar Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, em homenagem ao chefe da delegação do Brasil na Copa do Mundo daquele ano, em que o país saiu vencedor

1969 A concha acústica que servia para eventos é demolida para dar lugar, no ano seguinte, ao tobogã

1988 O estádio é tombado pelo Conpresp

1994 Gestão de Paulo Maluf tenta viabilizar privatização do estádio

1998 O Condephaat decide também tombar o Pacaembu

1999 O então prefeito Celso Pitta inclui o estádio numa lista de bens a privatizar

2015 Gestão Fernando Haddad abre edital para conceder o estádio; duas empresas encaminharam propostas, que ficaram paradas nos órgãos de patrimônio

2017 Então prefeito, João Doria anuncia novo plano para a concessão, que é aprovado pela Câmara; ao longo do processo, Conpresp e Condephaat estabelecem parâmetros para as modificações futuras

15.ago.2018 TCM suspende edital para a concessão, liberando-o de novo em fevereiro seguinte

8.fev. 2019 Consórcio Patrimônio SP, formado pela empresa de engenharia Progen e pelo fundo de investimentos Savona, vence concorrência para gerir estádio por 35 anos, mas resultado é suspenso -- juíza disse que vencedor não cumpria parte do edital

13.abr.2019 Prefeitura declara consórcio vencedor habilitado e retoma a concessão

16.set.2019 Bruno Covas assina concessão do estádio ao vencedor do edital, o consórcio Patrimônio SP -- que originaria a concessionária Allegra Pacaembu

12.jul.2019 São divulgados os desenhos do escritório Raddar, de Sol Camacho, para o novo Pacaembu

29.jul.2020 Justiça nega suspensão da concessão, pleiteada desde 2019 pela Associação Viva Pacaembu e Ministério Público de SP, com base no fato de que Eduardo Barella, dono da Progen, tivera cargo em conselho da SPTrans entre 2017 e 2018, o que contrariaria o edital ​

25.ago.2020 Requerimento de alvará para as obras no estádio, assinado pelo arquiteto Rafael Carneiro Bastos de Carvalho, é protocolado na prefeitura


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