Descrição de chapéu Obituário Carolina Bueno (1974 - 2021)

Arquiteta sócia-fundadora do escritório Triptyque, Carol Bueno morre aos 46 anos

Carolina Bueno, descrita como solar por seus colegas, morreu de câncer no cérebro no último dia 4

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São Paulo

“Meus clientes falam: ‘É lá na cidade, vocês estão na cidade, né?’. É, a gente está na cidade”, conta Carolina Bueno, no alto do edifício Copan, em uma entrevista ao canal Design Lab TV.

Ao comentar a mudança de seu escritório, o Triptyque, de uma casa na avenida Europa, nos Jardins, na zona oeste de São Paulo, para um edifício na rua Araújo, ao lado de boates e botecos do centro, a arquiteta sutilmente frisava um deslocamento muito em sintonia com sua trajetória e seus tempos.

Estar no centro era verdadeiramente estar na cidade onde ela nasceu, em 28 de outubro de 1974, e onde se enraizou com seus três sócios —e amigos—, que a acompanharam desde recém-saídos da faculdade até o último dia 4, quando a arquiteta morreu, em decorrência de um câncer no cérebro.

É uma mulher loira, de cabelos longos e cacheados, que se destacam sob o capacete branco de obra; ela usa uma malha cinza, uma echarpe branca, batom vermelho; pendurado na blusa, um par de óculos; ao fundo, vê-se uma paisagem de edifícios
A arquiteta Carol Bueno, sócia-fundadora do escritório franco-brasileiro Triptyque, morta em 4 de janeiro de 2020 - Divulgação

Brasileira formada na École d’Architecture Paris-La Seine, depois de ter estudado na Suíça e na Itália, Carolina Bueno era a única mulher e a única não francesa entre os quatro fundadores do escritório —seus sócios eram seus colegas de faculdade Grégory Bousquet, Guillaume Sibaud e Olivier Raffaëlli.

Em uma profissão ainda bastante dominada por homens, ostentava sua feminilidade. Bonita, lábios pintados de vermelho e sempre muito elegante, exibia os cachos loiros bem cuidados sob o capacete de obra.

Era não só muito feminina mas “superfeminista”, lembra Bousquet. “Tinha uma posição política muito forte e isso foi muito bom para nós também.”

Carol “fazia questão mesmo”, diz o sócio, de se mostrar como era, sem mudar para se encaixar no meio. Se sua figura podia causar algum estranhamento entre os operários, “com sua energia e autoridade, sumia em cinco minutos”.

Seus sócios reforçam o aspecto colaborativo do trabalho do grupo, que torna até difícil separar a contribuição de cada um —um objetivo almejado desde a escolha do nome do escritório. Tríptico é uma obra de arte em três partes que, ainda que independentes, formam um todo.

Nesse conjunto, ela “trazia uma energia muito acima da média”, na festa ou no trabalho, diz Sibaud. “A gente costumava chamá-la de coelhinho Duracell. Quando estava todo mundo no chão ela ainda estava tocando bateria.”

Em outro vídeo, do curso livre Arquitetura Paulistana, Carol rememora o início da carreira do quarteto em São Paulo —mantendo uma sede na França, transferiu-se com os colegas primeiro para o Rio de Janeiro e, depois, para sua cidade.

Juntos, notabilizaram-se por soluções ousadas e inovadoras. Na chegada, porém, eram outsiders, diz ela a um grupo de jovens.

Convocados por uma incorporadora para participar de um concurso de prédio na zona oeste, venceram a disputa com outros escritórios paulistanos —e foram dispensados pouco depois.

“Olha, a gente amou o projeto de vocês, adorou essa história, mas a gente se encontra daqui a alguns anos”, ouviram, segundo conta no vídeo.

O reencontro se deu para um edifício na Vila Madalena, bairro da zona oeste que viria a ser muito modificado por essa construtora —que entre os dois momentos se reconfigurou como Idea!Zarvos— e que foi o primeiro lar paulistano do Triptyque.

Sibaud também recorda que a assimilação pelo meio arquitetônico já consolidado na cidade não foi imediata. “Ficamos muito amigos, mas demorou, da Escola Paulista”, recorda, não sem frisar que muitos dos herdeiros do movimento modernista de São Paulo expressaram seu pesar pela perda de Carol.

“Mais para ela do que para a gente foi uma conquista conseguir convencer essa bela instituição de que o trabalho da gente tinha alguma qualidade, ainda que exógena.”

A integração conquistada foi o que permitiu fazer o movimento rumo ao centro, onde estavam os arquitetos já estabelecidos, opina ele.

Ao longo dessa trajetória, destacaram-se com edifícios como o residencial POP XYZ, na Vila Madalena, projetos de espaços comerciais, como a Red Bull Station —retrofit de um edifício de subestação elétrica no centro da cidade que abriga centro cultural da marca de enérgetico— e educacionais, como a escola Concept, também numa construção antiga repaginada, nos Jardins.

Mantendo-se como escritório internacional, o Triptyque teve instalações e performances na Bienal de Hong Kong/Shenzen em 2009, no museu Guggenheim de Nova York, e em Londres, no Festival of Architecture e no Victoria & Albert Museum, em 2010.

Em 2014, projetos do escritório para um edifício comercial na rua Colômbia, nos Jardins, e para o centro de visitantes do instituto Inhotim, em Brumadinho (MG), passaram a fazer parte da coleção permanente do Centro Pompidou, em Paris. O grupo participou ainda da Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2018.

Entre as intervenções recentes do escritório em São Paulo está o projeto do novo largo do Arouche, na região central —que, no entanto, foi entregue em março de 2020 com um resultado em tudo distante do concebido pelo grupo.

Com a descoberta do câncer, há um ano, conta Bousquet, Carol “se radicalizou um pouco mais”, no sentido de “só ir para projetos que podiam mudar um pouco o mundo”.

Nesse âmbito, engajou-se muito pelo edifício Amata/Floresta Urbana, que apresentou em um congresso no Canadá em 2019.

Todo pensado em madeira certificada, com 13 andares escalonados e de uso misto, o projeto ilustra a preocupação com a sustentabilidade que a arquiteta demonstrava publicamente com frequência.

Carol, que estudou paisagismo, tinha um interesse especial na natureza —era uma “ligação com as forças naturais, o sol, a floresta”, define Olivier Raffaëlli, para quem a sócia era dona de uma “energia solar”.

“Essa vibração com o mundo... Eu sou racional, mas a sinto ainda”, completa.

Raffaëlli associa essa capacidade de lidar com a natureza à brasilidade, mas diz que Carol, de um lado, e eles três, de outro, conseguiram ultrapassar as especificidades de suas culturas originais.

Uma grande amiga, guerreira, lutadora, enumera Bousquet. Pensar no futuro do escritório sem sua presença não era uma hipótese.

“Vai ser terrível”, resume ele. “Mas nos formamos juntos, tem uma semente de cada um em cada um de nós.”

Carol guardou reserva quanto à doença e trabalhou o quanto pôde. “Feliz ou infelizmente a pandemia escondeu um pouco a situação”, permitindo que ela não mostrasse uma fragilidade, coisa de que não gostaria, afirma Bousquet.

Seu funeral, restrito à família, ocorreu na própria segunda-feira. Carol Bueno deixa, além dos sócios e amigos, a filha Zoe, 8, e uma marca única na paisagem urbana.

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