Terra do forró, vila tem 3 assassinatos em clima de faroeste

Itaúnas, no Espírito Santo, tem dezembro ensanguentado e denúncias de milícia local

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Rio de Janeiro e São Paulo

As areias de Itaúnas, vilazinha praieira no Espírito Santo famosa por seu festival de forró, às vezes cospem fragmentos de ossos e dentes. São resquícios de um antigo cemitério soterrado pelas dunas locais, mas, para moradores, também um símbolo do clima de bangue-bangue que, só em dezembro, deixou dois corpos e um desaparecido por ali.

O assassinato de um italiano inaugurou a temporada de crimes que fez este distrito de Conceição da Barra (ES) pular do noticiário de turismo para o policial. Gabriele Gigli, 64, vivia na casa onde foi encontrado morto, possivelmente alvo de pedradas.

Indícios fortes de crime passional, segundo o delegado responsável: ele teria transado com a mulher de um nativo. O suspeito se chamava Valdenisson dos Santos Falcão, que a vila com cerca de 1.400 habitantes conhece por Niu. Ele era usuário de crack, fazia bicos de pedreiro e tinha um filho de sete anos com a mulher que teria feito sexo com Gigli. Sumiu do mapa.

Três moradores dizem à Folha que todo mundo em Itaúnas sabe o que aconteceu: diante de várias pessoas, ele foi alvejado após uma emboscada que começou com uma perseguição nas ruas e terminou na residência na qual Niu tentou se abrigar, de uma anciã de Itaúnas. Seus algozes colocaram seu corpo num automóvel, e ninguém nunca mais o viu. Um vídeo que circula pelo WhatsApp mostra o suposto cenário de sua morte ensanguentado.

A Polícia Civil diz que "identificou o autor do crime, e a justiça expediu mandado de prisão em seu desfavor", mas até agora "o suspeito não foi localizado".

Niu era negro e pobre, o que para locais explica por que sua morte não virou notícia. O terceiro homicídio, contra um capoeirista de família importante que dava aula para crianças, causou comoção.

"Esta vida é uma viagem/ Pena eu estar só de passagem." Com versos de Paulo Leminski, Cuarassy Pedro Medeiros Del Nery, 39, foi homenageado pela mãe de duas alunas. O laudo cadavérico aponta dois buracos, no peito e no braço esquerdo, que provocaram "hemorragia interna decorrente de lesão por projétil de arma de fogo".

Cuarassy Pedro Medeiros Del Nery, 39, professor de capoeira morto no dia 18 de dezembro em Itaúnas - Acervo pessoal

Cuarassy morreu em 18 de dezembro, após brigar com o músico Tiago Viana, 35. Estava num bar do povoado quando o assassino confesso chegou.

Os minutos que antecedem os tiros à queima-roupa foram capturados por um celular. Tiago diz que não fez nada demais com o professor de capoeira para ele se exaltar. Cuarassy pega algo de vidro na mão e a certa altura retruca: "Esse moleque veio arrumar confusão dentro da vila, veio aqui falar que veio matar".

O duelo sai do bar e vai para a rua. O capoeirista acerta o outro homem com chutes e socos. Entram numa pousada, e só se ouve três disparos.

Segundo a polícia, Tiago se entregou e contou que jogou a arma num rio. A princípio ele foi liberado pelas autoridades, que só depois decretaram a prisão preventiva. Seu advogado não foi localizado.

Em depoimento, o músico confessou que comprou um revólver cinco dias antes do crime, alegando que o fez para se proteger. Moradores contam outra versão: que o músico vinha ameaçando de morte o dono do bar onde a briga começou.

Para esta reportagem, a Folha conversou com seis deles. Ninguém quis que o nome fosse publicado, e é fácil entender o porquê. Todos temem o que definem como milícia local, um braço à margem da lei que decide os cabras marcados para morrer.

É o que dizem que aconteceu com Niu, por ter matado o italiano e, com a repercussão do caso, posto em risco o turismo da vila.

A Itaúnas que não sai nos guias turísticos tem sangue nas mãos. Os nativos relatam que, anos atrás, um PM conhecido como Rambo montou um negócio para oferecer vigilância —prática no DNA da milícia. Os estabelecimentos que topavam pagar eram identificados com um adesivo.

Até que, em 2006, a sócia de um supermercado de Conceição da Barra foi sequestrada em frente a um salão de beleza e nunca encontrada. Dias depois, seu marido morreu com um tiro no ouvido. Suspeito de envolvimento no crime, Rambo foi morto em 2016, no quintal de casa.

O assassinato do casal Carmen e Carlos Comério foi um divisor de águas em Itaúnas. A adesão ao serviço do policial foi caindo, e novos "vigilantes" despontaram.

Não se trata da milícia clássica, aquela com participação de policiais ou ex-fardados. Esta até existe no norte do estado, onde fica a vila. Na própria redondeza, a grilagem de terra em plantações de eucalipto foi a brecha para o avanço miliciano, segundo denúncias. Mas o poder paralelo no distrito turístico, hoje, é atribuído a um civil apelidado por alguns locais de xerife.

"Itaúnas é o modelo clássico: você tem o turismo de forma intensa, região belíssima, toda uma dimensão de capital imobiliário e turístico que vai impactar a região. A milícia mergulha para se beneficiar, vender taxa de segurança etc", diz o sociólogo José Cláudio Alves, pesquisador do tema.

A Polícia Militar diz que, além do patrulhamento preventivo, "Itaúnas conta com diversas operações diárias de cercos táticos, pontos base, visitas tranquilizadoras e abordagens", sem especificar de quantos oficiais estamos falando.

Não há registro de denúncias de atividades milicianas na região, segundo o Ministério Público. E dificilmente haverá, já que todo mundo tem medo de virar a próxima mancha de sangue na vila de pescadores. Diz um morador: "Itaúnas hoje incita este ambiente de impunidade, de justiça pelas próprias mãos. Prefiro calar do que morrer". ​

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