Descrição de chapéu

Lembrar das mulheres faz parte da cura do Brasil

Na medida do tempo de cada uma, recusamos o papel de coadjuvantes: da matriarca às professoras

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Jaqueline Gomes de Jesus

Psicóloga com pós-doutorado em ciências sociais e história, é professora do IFRJ e da UFRRJ. Autora, entre outras publicações, do livro “Transfeminismo: Teorias e Práticas”.

Parafraseio Lélia Gonzalez para dizer que as mulheres têm que ter nome e sobrenome.

A lembrança mais antiga que me relatou Maria Marly da Cunha Gomes, minha mãe, foi a de sentar com a melhor amiga às margens da estrada de terra que passava por Santo Antônio do Itambé, no interior de Minas Gerais, esperando qualquer veículo passar para fantasiarem ser a chegada de parentes distantes.

Minha avó, Terezinha Pinto da Cunha, teve a coragem de embarcar com os quase dez filhos em um ônibus para Brasília, a fim de encontrar meu avô Jonas, que trabalhava na construção da nova capital. Ela me contou que gostava de admirar minha bisavó, Amarsirdes Duarte da Silva, cozinhando. Eu me recordo das mãos da vó manuseando fogo sem se queimarem. Ela me ensinou coisas ancestrais como cortar babosa na horta, catar barbatimão no cerrado, matar galinha e não ter medo dos mortos.

Minha mãe se tornou a primeira pessoa da família a entrar na universidade. Formou-se em pedagogia, uma das únicas estudantes negras. Após décadas foi eleita diretora da escola onde era professora no turno diurno e cuidava da biblioteca à noite. Ela recomendava que eu não seguisse a carreira docente. Obviamente desobedeci.

Quando me reconheci como mulher, contei a uma tia que iniciaria a transição pública. Ela respondeu que não era surpresa, pois as mulheres da família sabiam, desde os seis anos de idade daquela criança que lia demais, detestava “brincadeiras de meninos” e subia no telhado para observar o horizonte, que ela não seria um garoto no modelo “padrão”, mesmo que elas ainda não conhecessem a palavra “trans”.

No Dia Internacional da Mulher, retomo memórias das minhas mais velhas que fundamentam a mulher que sou. Desafiamos a história que tentou nos formatar, conforme apontado por Simone de Beauvoir, a partir de certos ideários de feminilidade. Na medida do tempo de cada uma, recusamos o papel de coadjuvantes: da matriarca às professoras.

A historiografia, tradicionalmente produzida pelos homens brancos, cisgêneros e supostamente heterossexuais, tem invisibilizado nosso papel nos fluxos do mundo ou o tem registrado tão-somente em notas de rodapé.

Aprendi com Conceição Evaristo que escrevivência não é falar de si como indivíduo isolado; acima de tudo, é resgatar o sujeito coletivo que compõe esse projeto milenar chamado humanidade.

Pluralizamos a palavra “mulher” e a tornamos multidão. Para além do recorte de uma branquitude de classe média e alta que se propagandeia universal, somos também as indígenas, negras, periféricas, lésbicas, com deficiência, gordas, bissexuais, faveladas, nordestinas, camponesas, precarizadas, refugiadas, transexuais e travestis, meninas e velhas, entre tantas.

Retomo a memória de Marielle Franco, covardemente executada por ser a mulher que era e pelas suas lutas, de modo a afirmar que a Justiça é o único caminho possível para que o Brasil comece a lidar com seus traumas, e transformado, oxalá liberte as novas gerações para que alcancem lugares com os quais sequer sonhamos!

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