SP pós-pandemia terá de lidar com esvaziamento de escritórios e excluídos do home office

Especialistas dizem que é preciso converter prédios comerciais para evitar 'mini-Detroits'

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São Paulo

​A pandemia de coronavírus deverá deixar marcas definitivas no desenho da cidade de São Paulo, com a expansão do home office e esvaziamento de escritórios.

Se a cidade não souber se planejar, a consequência pode ser a proliferação de mini Detroits, a cidade norte-americana que virou quase fantasma após a fuga de indústrias.

Na capital paulista, um dos desafios é como enfrentar a tendência de intensificação da vacância em regiões de escritórios devido à possível migração para o home office ou para um modelo híbrido por alguns setores —em alguns segmentos, um a cada cinco escritórios está vazio hoje em SP.

Por outro lado, é preciso criar estímulos para democratizar e permitir que a população da periferia tenha condições dignas para realizar o home office ou trabalhe perto de casa.

Para se adaptar às mudanças, São Paulo precisa investir em políticas urbanas para conter o esvaziamento de áreas no centro expandido com oferta de infraestrutura e criar novas centralidades nas regiões periféricas.

As discussões sobre a cidade pós-pandemia, ainda incipientes, surgem no mesmo ano em que a gestão Bruno Covas (PSDB) planeja revisar o Plano Diretor, aprovado em 2014 no governo de Fernando Haddad (PT). Urbanistas que conversaram com a reportagem, porém, preferem que as mudanças ocorram fora da discussão do plano para evitar "abrir a porteira" para demandas que interessam apenas ao mercado imobiliário.

Relator do atual Plano Diretor da cidade na Câmara, o urbanista e ex-vereador pelo PT Nabil Bonduki é um dos que acreditam que as mudanças devem ser debatidas em legislações separadas. Para ele, um dos pontos necessários será a discussão da conversão de usos dos prédios.

“O que vai mudar é a redução da área de escritórios da cidade. Temos hoje uma quantidade de escritórios muito grande, há uma vacância muito forte. Isso vai tornar necessário cada vez mais conversão de edifícios de escritório para residencial”, diz Bonduki.

O ex-vereador afirma que uma legislação para o retrofit (prática de modernizar áreas de um prédio aproveitando sua estrutura) poderia contribuir no sentido de transformar eventuais imóveis corporativos em residenciais. "A cidade tem muita necessidade de espaço habitacional."

De acordo com estudo da JLL, empresa especializada em imóveis corporativos, a vacância deste tipo de imóvel de alto padrão em São Paulo cresceu em 2020, chegando a 22,4% no último trimestre.

Embora haja expectativa de um retorno a parte dos escritórios após a pandemia, estudos mostram grande espaço para que o home office se mantenha em algumas áreas da economia.

Um estudo da consultoria McKinsey concluiu que um modelo híbrido, com trabalho remoto de três a cinco dias por semana, poderia ser feito com a mesma eficácia de quem está permanentemente no escritório para mais de 20% da força de trabalho. Com a vantagem de ser bem mais barato para a empresa.

Segundo o estudo, serviços financeiros são a categoria com maior potencial de trabalho remoto no futuro.

Um caso emblemático é XP, empresa do mercado financeiro, que anunciou home office permanente e a construção de uma nova sede em São Roque. Antes disso, a empresa mantinha seis andares em um edifício na avenida Juscelino Kubitschek, a área expandida do centro financeiro de São Paulo.

As regiões das avenidas Faria Lima, Juscelino Kubitschek e Berrini são exemplos de locais com grande oferta de escritórios locados ao mercado financeiro e que devem ser afetadas.

Vendo o esvaziamento da região na pandemia, o arquiteto Matheus Marques Rodrigues Alves, 38, e seus sócios vão fazer um projeto para o próprio prédio onde fica o escritório de arquitetura deles, o Hiperstudio, na avenida Faria Lima.

"A gente começou a discutir, porque a gente via a avenida ficando mais vazia, comércios fechando, algumas salas do edifícios vazias", diz ele, acrescentando que, mesmo antes da pandemia, a região já vivia esvaziamento durante a noite.

Segundo ele, a cidade tem grande oferta de edifícios mais antigos, de salas comerciais, com grande quantidade de banheiros, que teriam conversão mais fácil. O projeto criado pelo grupo tem módulos de apartamentos residenciais intercalados com escritórios, com acessos independentes entre moradia e escritório, e pequenos espaços de convivências em alguns pontos.

Projeto de prédio de escritórios convertido para o uso misto
Projeto de prédio de escritórios convertido para o uso misto - Divulgação/Hiperstudio

Ideias como essa ajudariam a evitar o subaproveitamento da boa infraestrutura das regiões de escritórios na cidade. Caso contrário, um dos riscos é que regiões nos arredores da Faria Lima, hoje ultravalorizada, tenham o mesmo destino do centro da cidade um dia. Um empurrão do poder público, por meio de incentivos e mecanismos para conversão de imóveis, é fundamental para evitar que isso aconteça.

Ao longo de sua história, a cidade de São Paulo já viveu esvaziamentos de diversas regiões, devido à mudança na dinâmica de trabalho e setores econômicos.

“O poder público se mostrou incompetente para trabalhar com agenda de conversão urbana. A cidade já passou de industrial para uma cidade de serviços e não fez um processo qualificado para converter áreas industriais”, diz o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto das Cidades da Unifesp.

Nakano diz que São Paulo já tem mini Detroits, como a região da avenida do Estado, Barra Funda, Jurubatuba, entre outras antigas áreas industriais. “Foi medíocre o processo de conversão daquelas áreas. Tudo isso foi deixado para o mercado, e o poder público operou muito mais investindo em infraestrutura para favorecer interesses privados”, diz.

Se bem aproveitado, o home office pode impulsionar a criação de novas centralidades na cidade, evitando que a população tenha de se deslocar por horas até o trabalho. Embora o trabalho em casa seja ainda mais prevalente entre a população mais rica, há empresas de alguns setores, como o de telemarketing, que já têm migrado para este modelo de trabalho definitivamente.

Nakano afirma, porém, que há muitas pessoas cuja situação de moradia precária torna muito difícil ficar o dia todo em casa, como no caso da população de favelas.

A Folha mostrou em reportagem como uma favela surgida na região do Parque Novo Mundo (zona norte), com muitos barracos de madeira minúsculos, era moradia para vários profissionais que faziam home office em áreas como telemarketing. Às vezes, um cômodo serve de moradia para várias pessoas do mesmo núcleo familiar, que usam a residência apenas para dormir.

O urbanista Fernando Tulio, presidente do IAB-SP (Instituto dos Arquitetos do Brasil - São Paulo), afirma que deveria haver um plano para melhorar a residência da população e ao mesmo tempo fornecer locais onde eles pudessem trabalhar próximo de casa.

Tulio exemplifica que parte importante da população não tem nem mesmo acesso a banda larga em casa. “Poderia haver uma política de reforma de moradias precárias e coworkings coletivos a preços acessíveis, além da ampliação do programa de wifi livre, uma agenda para democratizar e garantir condições dignas para o home office”, diz.

Se bem feita, essa eventual descentralização poderia aproximar esses pontos da chamada cidade de 15 minutos, conceito que prevê que se tenha a maioria das necessidades a essa distância de casa.

Nabil Bonduki afirma que pode haver uma mudança no padrão imobiliário, com mais habitações em que há espaço de trabalho também no próprio edifício. "A ideia de uso misto vai ficar cada vez mais forte, as pessoas poderem ter próximo de sua casa comércio, serviço", diz.

Na capital, já há alguns condomínios oferecendo coworking —no entanto, esse tipo de oferta ainda não é comum no mercado popular.

O urbanista também vê espaço mudanças para adaptar a legislação das chamadas zonas estritamente residenciais ao home office. Atualmente, essas regiões, algumas delas áreas ricas com mansões na capital, vetam uma série de atividades em casa.

Kazuo Nakano acrescenta que, na busca por descentralizar a cidade, é fundamental que isso seja feito a partir da oferta de um sistema de transporte melhor. Por si só, os meios de transporte acabam trazendo investimentos nos arredores e gerando novas centralidades.

Ele alerta, porém, que é preciso pensar em estímulos para que haja uma ocupação bem feita. Cita negativamente o exemplo de Itaquera, onde foi criada uma série de equipamentos públicos e também privados nos últimos anos. No entanto, sem comércios e serviços, há muitas ruas vazias e subaproveitadas.

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