Descrição de chapéu Coronavírus

Com ruas vazias e bares fechados, Vila Madalena, em SP, vive desmonte da boemia

Pontos tradicionais da noite paulistana se extinguiram ao longo do abre-e-fecha da pandemia

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São Paulo

Aluga-se a Vila Madalena. Com fase mais restritiva de isolamento após 13 meses de pandemia, o que se vê ao andar pelo bairro, outrora reduto da boemia e do turismo na capital paulista, são ruas vazias e placas de aluguel ou venda em sequência. No lugar do samba, o silêncio —e o chope, só se for pra viagem.

Bares tradicionais da famosa esquina entre a rua Fidalga e a rua Aspicuelta, como Filial e Genésio, já frequentados por nomes como Milton Nascimento, Paulinho da Viola e João Bosco, não existem mais. Também fechou as portas o bar do Betinho, deixando órfãos da sua feijoada. A Mercearia São Pedro, ou "Merça" para os mais chegados, e o Empanadas Bar estão apenas no delivery.

O Canto Madalena foi temporariamente fechado, e o Centro Cultural Rio Verde, que era casa de shows, estúdio, teatro, agora é vazio e decretou o fim. Mas não só. Na lista dos que sucumbiram à quarentena estão de lojas de roupa a salas em prédios comerciais até antiquário. Em frente ao que já foi uma boutique de itens infantis, cresce agora um capim que já beira a metade da porta.

No fim da semana passada, antes de o governador João Doria (PSDB) relaxar parte das restrições para frear o coronavírus no estado, era possível caminhar de ponta a ponta pelo Beco do Batman sem cruzar com ninguém —e, inédito, ver todos os grafites sem as clássicas poses para foto.

No comércio que ainda resiste, as reclamações ora são contra o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), principalmente pela demora na vacinação, ora contra Doria, por impor as medidas restritivas.

Desde 15 de março, o estado está na chamada fase emergencial, a mais dura até agora. Na última segunda-feira (12), o governo estadual permitiu o retorno à fase vermelha, depois relaxada para uma fase de transição.

Celebrações religiosas já ocorreram neste fim de semana, mas bares, restaurantes, academias e salões de beleza só poderão receber clientes, com capacidade muito reduzida e horários restritos, a partir da semana que vem. A boemia, porém, segue vetada: das 20h às 5h, o estado mantém um toque de recolher, ainda que não haja penalização para indivíduos, só para estabelecimentos.

Os pequenos empresários estão se virando como podem. Alguns já demitiram funcionários, pegaram empréstimos, venderam apartamento e carro, estão negativos com fornecedores. Eles dizem que, como a Vila Madalena é um dos principais pontos turísticos da cidade, a fiscalização é maior do que nos bairros mais distantes.

Uma das opções procuradas no horário do almoço antes da pandemia era o Via Bar. No estabelecimento vazio, o sócio Miguel Silva Correia, 48, lembra que enchia a calçada e o salão de cadeiras. Agora, entrega cerca de 30 PFs pelo delivery por dia.

“Abri hoje a porta aqui só para entrar ventilação. Está péssima a situação, a gente faz marmitex a um preço baixo, R$ 14, porque se for mais, não vende.”

A adaptação, no entando, não foi suficiente. “Trabalho de domingo a domingo e não paga nem as contas do aluguel, água e luz. Metade fica no vermelho. Colocamos funcionários de férias, reduzimos salários. Vamos ver até quando a gente aguenta. A maior parte [do comércio] por aqui já fechou”, diz, enquanto aponta várias lojas no entorno que faliram.

Parado em frente a uma padaria do bairro junto a uma dezena de motoboys, Alecsandro Silva, 36, diz que até o delivery tem minguado. No início da quarentena, os pedidos explodiram, mas agora parece que o bolso da clientela também esvaziou.

Numa sexta-feira, ele esperava havia quatro horas para fazer a primeira entrega do dia, que ainda não tinha tocado no aplicativo. O operador de empilhadeira desempregado sai de Osasco para trabalhar das 8h às 22h no bairro da zona oeste e ganhar, num dia bom, R$ 100.

“É o que tá tendo no momento, para não ficar parado. Como leva o pão, o leite, para casa?”

Humberto Munhoz, sócio do O Pasquim, um dos pontos mais tradicionais da rua Aspicuelta, viu o faturamento sair da casa do milhão para zero. Ele critica a gestão de Doria na pandemia, que, segundo o empresário, não resolve o problema nem da economia nem da saúde.

“Esse pseudo-lockdown em São Paulo é insustentável. Temos que tirar essa visão de empresário endinheirado e genocida. Somos um setor que tem todos os protocolos de saúde estabelecidos para poder operar e não aguenta mais ficar fechado. E não é só o empresário que vai perder, mas um monte de trabalhador que vai ficar sem o sustento da família", diz ele, que já demitiu 17 funcionários.

O protocolo que segue inclui mesas distantes, medição de temperatura, álcool em gel, garçom com máscara, cardápio digital. Na fase menos restritiva, chegou até a abrir, mas “o que você faz num bar até 20h? Nada. O que adianta inventar um protocolo e fechar? Ele ferrou um monte de CNPJ, CLTs e não salvou vidas", diz o empresário sobre o governador.

Segundo a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), o crescimento médio de 4,5% ao ano entre 2006 e 2019 no setor foi abruptamente interrompido no ano passado, quando o país perdeu 3 em cada 10 negócios de alimentação —ou 300 mil estabelecimentos.

Os empresários temem novo colapso com a demora da aprovação de novas medidas de auxílio pelo governo federal. Eles esperavam a renovação do Programa de Manutenção do Emprego e da Renda (BEm) pelo Ministério da Economia. A expectativa é de que seria divulgado junto do anúncio da volta do Auxílio Emergencial, o que não ocorreu.

Mas alguns cantinhos da Vila Madalena ainda reservam um alento em meio à desesperança. A campanha #FicaÓ deu certo e o bar Ó do Borogodó vai se manter de pé com sua portinha discreta e a parede de tijolinho que abrigam duas décadas de rodas de samba raiz.

Com o anúncio do fim, uma enxurrada de apoio e doação para uma vaquinha online conseguiram levantar os R$ 300 mil necessários para quitar as dívidas acumuladas na pandemia, evitar o despejo e dar um respiro aos donos até que, enfim, o pandeiro, o surdo, o cavaquinho e a cuíca possam se encontrar de novo com o coro daqueles que não deixaram o samba morrer.

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