Negligência médica e escolar marcaram vida de jovem morto por PM em SP

Policiais contaram diferentes versões sobre morte de Thiago Aparecido Duarte de Souza

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São Paulo

Thiago Aparecido Duarte de Souza, 20, saiu para comprar pão e leite às 9h no bairro Jardim Limoeiro, um dos mais pobres da zona leste de São Paulo. Antes de chegar ao mercado, levou um tiro na boca à queima-roupa disparado por um policial à paisana. Morreu depois de 12 dias internado, em 20 de abril de 2021. Mas ele já havia encarado outras mortes, simbólicas, quando lhe foram negados atendimento médico, psicológico e escolar.

Aos quatro anos, Thiago engoliu uma moeda. Sua mãe procurou um hospital público, que recomendou esperar que o menino a expelisse ao invés de fazer um procedimento para retirar o item. A saída da moeda foi traumática e o fez desenvolver uma síndrome chamada encoprese —quando a criança resiste a defecar e isso faz com que as fezes se acumulem, levando a vazamentos.

Sem controle, Thiago passou a fazer cocô ao longo do dia e até dormindo. Na escola estadual, não tinha amigos e era rechaçado inclusive pelos professores e diretores.

Thiago olha para a câmera, em foto em que aparece do ombro para cima. Ele usa uma camiseta em tom coral. Do lado direito da imagem, há um colchão apoiado na parede
Thiago Aparecido Duarte de Souza, morto após levar um tiro na boca disparado por um policial - Divulgação/Arquivo pessoal

“Rejeitavam, batiam nele, diziam que fedia. E, por isso, ele ficou agressivo com os colegas”, diz a mãe, a diarista Queli Duarte, 40.

Aos 13, Thiago largou os estudos. Ele, que recebeu o diagnóstico de deficiência intelectual, não tinha aprendido a ler nem escrever.

“Eu levava ele na psicóloga do Cras [serviço municipal de assistência social], mas ela dizia que ele era daquele jeito porque queria. Fui atrás de psicólogo, escola, hospital... ninguém me deu suporte”, diz Queli.

Mesmo com a maioridade, Thiago não sabia falar o nome completo ou o dia em que nasceu. “Se você falasse ‘pega isso aqui e leva ali para mim’, ele levava. Não tinha maldade”, conta Queli.

No bairro, não há curso ou qualquer tipo de ocupação para os adolescentes, o que deixa o caminho aberto para a criminalidade. Thiago viu conhecidos serem mortos pela polícia.

A mãe conta que o adolescente entrou em depressão, mas que a doença não foi diagnosticada. “Ir no médico para quê? Nunca vou sarar”, repetia o menino, que fora submetido a diversos exames de toque e lavagens estomacais.

“Eu tinha muito medo, de os meninos chamarem ele para fazer coisa errada e ele ir. A polícia sempre chegou aqui batendo”, diz Queli.

No dia 8 de abril, ele saiu para comprar pão e leite, mas parou para conversar com Fernando Henrique Andrade da Silva, 27, um conhecido da comunidade. Viu um PM à paisana apontar a arma em sua direção. Segundo contam testemunhas, Fernando deitou no chão, obedecendo a ordem. Thiago, não. O primeiro está preso; o segundo, morto.

Segundo a Polícia Militar, os dois eram suspeitos de terem roubado um carro. O cabo Denis Augusto Amista Soares, 37, que estava de folga, alegou que teria atirado em legítima defesa após Thiago tentar sacar uma arma. A mãe de Thiago nega a possibilidade de o filho ter uma arma.

A vítima do roubo foi à delegacia e não reconheceu Thiago, após ver sua fotografia. Reconheceu apenas Fernando. O condutor também não mencionou ter visto arma alguma.

Um vídeo gravado por testemunhas mostra o momento da prisão. Um dos policiais, que aparece de farda nas imagens, pisa na cabeça de Fernando enquanto tenta tirar sua mochila, com ele rendido e desarmado. A filmagem mostra Thiago caído e com um rastro de sangue.

A PM encontrou o carro roubado abandonado em uma rua próxima.

No boletim de ocorrência, as versões dos policiais envolvidos têm contradições a respeito do roubo e de como os suspeitos foram detidos.

Em uma delas, os PMs que foram atender a ocorrência do roubo disseram que, após localizarem o veículo abandonado, viram dois suspeitos presos pelo policial à paisana. Segundo eles, o agente disse que estava passando pelo local quando a dupla tentou assaltá-lo e ele reagiu.

Mas essa versão não foi a mesma dada pelo policial à paisana na delegacia. Ele falou que abordou os dois por suspeitar que seriam autores do roubo e disparou quando um deles tentou atirar nele. No vídeo, o policial de blusa branca aparece dizendo que "ele [Thiago] tentou tirar a minha arma". Uma terceira versão.

O caso é investigado pelo 54º DP, de Cidade Tiradentes, segundo a Secretaria da Segurança Pública. A PM afirma que apura a conduta dos policiais.

“Me contaram que o policial gritou ‘perdeu, ladrão’. Meu filho ficou de pé, disse que não ia deitar e levantou a blusa para mostrar que não estava armado. O policial então puxou o braço dele e colocou a arma na boca. Ele não gostou e tentou tirar. Aí, ele atirou”, diz a mãe. Ela acredita que a abordagem não seguiu os protocolos e que Thiago pode ter reagido por sua condição psicológica.

Acho que a polícia teria abordado ele de outra forma se ele fosse loirinho, branquinho

Queli Duarte

Diarista, mãe de Thiago

A família também afirma que policiais recolheram as imagens das câmeras dos estabelecimentos próximos ao local naquele mesmo dia. Também reclamam do atendimento na delegacia.

"Acho que a polícia teria abordado ele de outra forma se ele fosse loirinho, branquinho”, diz a mãe.

No hospital, durante os 12 dias em que ficou na UTI, ela não conseguiu ver Thiago —segundo os médicos, por causa do protocolo para a Covid-19.

“Minha vida toda foi lutar por ele, para agora nem conseguir me despedir do meu filho. Falam para eu deixar para lá e eu sei que não vai trazer ele de volta, mas, se eu me calar, vou ser só mais uma mãe sofrendo. O policial tem que entender que não é Deus, não pode julgar e matar”, diz Queli.

Ela diz que foi informada no IML que não havia nenhuma bala na cabeça de Thiago, mas que não foi comunicada ou autorizou a cirurgia para a retirada do projétil.

“O que o hospital fez com a bala? Como fizeram uma cirurgia sem minha autorização? Eu só quero justiça para que quando esse policial estiver na rua de novo, ele pense duas vezes antes de atirar.”

Apoio

O caso de Thiago é acompanhado pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, um movimento que atua em bairros pobres da região metropolitana de São Paulo para combater a impunidade da violência por agentes do estado.

O grupo se divide em dois tipos de atuação. O primeiro é o que recebe as denúncias, com dezenas de articuladores, que vivem nas comunidades, próximo dos moradores e das ocorrências. O segundo é formado por coletivos, ONGs e ativistas voluntários, que atuam na defesa jurídica, no apoio psicológico e na pressão junto à imprensa, o Ministério Público e a Defensoria Pública.

"A relação com os articuladores faz com que a gente consiga ter respeito na quebrada e transforma o medo em confiança", afirma a psicóloga Marisa Feffermann, uma das articuladoras da Rede, que também coordena o grupo de Juventude e Violência do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais. "É substituir o silêncio por um grito."

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