Descrição de chapéu Obituário Antonio Pescarini (1931 - 2021)

Mortes: O engenheiro da primeira turma da faculdade

Antonio Pescarini fez parte da classe que deu origem à Escola de Engenharia de São Carlos

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São Paulo

Já escrevi muitos obituários nesses anos todos, mas acho que não sei escrever o seu, pai. Talvez porque tenha faltado uma última conversa para perguntar o que eu não poderia deixar de fora. Ou porque filhos não conseguem ser imparciais com os pais. Um obituário não pode ser só elogios; precisa de alguma coisa que meu momento emotivo atual não consegue enxergar.

Poderia, então, só contar as suas histórias que presenciei. Do engenheiro que projetou seguras pontes, estações de tratamento, a própria fábrica e prédios com a mesma habilidade de quem resolvia a maioria dos problemas de casa com um alicate e um pedaço de arame caso faltassem as ferramentas apropriadas.

Ou poderia contar que o senhor apareceu no segundo dia da minha lua de mel para consertar o chuveiro da casa da praia e que dormiu lá conosco naquela noite. Aliás, foi o senhor também quem ajudou a instalar o chuveiro quando o casamento não deu certo e me aventurei a morar sozinho pela primeira vez com quase 35 anos de idade nas costas.

E sabe o que mais? Até hoje sou meio dependente do senhor. Aprendi, após muitos buracos tortos, a usar uma furadeira. Mas ainda não sei dar nó em gravata. Como vai ser no próximo convite de casamento? Se me chamarem para ser padrinho, acho que vou ter de recusar.

Também nunca vou esquecer que o senhor tentou me ensinar a andar a cavalo na fazenda de Socorro (SP), para onde a gente ia ouvindo Zé Béttio no rádio do Fiat 147 quando o sol nem tinha nascido ainda —talvez seja por isso que até hoje eu odeie acordar cedo.

O engenheiro Antonio Pescarini, que morreu aos 90 anos na última sexta-feira (21). Na foto, Antonio com os netos Larissa, Thales, Henrique e Enzo
O engenheiro Antonio Pescarini, que morreu aos 90 anos na última sexta-feira (21). Na foto, Antonio com os netos Larissa, Thales, Henrique e Enzo - Arquivo Pessoal

Convenhamos, você (vou tomar a liberdade e romper a formalidade) foi bem mais eficiente em me ensinar a andar de moto do que a cavalo. Liberava a RX 125 na minha mão desde que eu não passasse para a segunda marcha. E, dizendo que eu não conseguiria fazer nada de mais só em primeira marcha, convenceu um policial a liberar um moleque de 15 anos.

Nisso estamos quites. Num fim de tarde, já no começo de fechamento do jornal, tive de dar uma escapada da Redação para passar a lábia no sargento da PM que parou você com a carta vencida, para que não guinchasse o carro. No fim, o policial militar que pintava quadros e iria expor em Moscou virou pauta.

Veja só, pai, meu filho nunca quis andar de moto. Não puxou a nós, apesar da enorme ligação que sempre uniu os três. É, seu Tuta, o Thales, que você chamava de "colega", está mandando bem no doutorado da USP, a mesma universidade de cuja primeira turma em São Carlos você fez parte. Logo vai ser doutor. É aquele moleque para quem você ajudou a dar almoço quando achei que poderia criar filho sozinho. Você deve ter visto: ele foi te visitar no sábado passado. Apesar de não abrir os olhos, a gente tinha certeza que você nos via lá todos os dias.

Na quarta-feira, a enfermeira veio elogiar sua força. Mas eu sabia que você havia traçado seu destino sozinho, como sempre fez, e não haveria máquina de UTI que te faria mudar de ideia. Sua parceria com ela seria só se aquele trambolho quebrasse —daí bastaria alguém arrumar um alicate que você a consertaria.

Quando nos despedimos em Vinhedo, pensei que precisaria escrever alguma coisa sobre você. Aquele que foi o professor que me ensinou a fazer regra de três, que tanto uso para conferir os cálculos de repórteres nos textos sobre a pandemia que trancou você em casa e não deixou mais que visse as ofertas nos supermercados de Jundiaí.

Quando eu tiver tempo, vou procurar aquela cartela de selos do Quarto Centenário de São Paulo que achei perdida no meio de um livro velho no escritório da granja que nunca teve uma galinha em Louveira.

Também vou pegar a Tatoca qualquer hora para ver como estão as coisas no sítio em Indaiatuba e lhe contar as novidades. Vou sentar no banco onde fotografei você e a mamãe no ano passado. Vamos tirar outra selfie, como aquela que você transformou em porta-retrato do lado da cama, mas agora só a dois.

Pai, acho melhor parar por aqui. Os olhos insistem em ficar úmidos, talvez pela luminosidade da tela do celular ou porque não paro de chorar nessa mesa de bar onde sentei sozinho para escrever escondido.
Mas saiba que, quando o padre fez a oração, tive a convicção de que quem estava rezando por nós era você. Logo a gente se vê de novo.

Algum lugar no além ganhou um exímio negociador, um construtor de pontes, um mecânico de qualquer coisa e um baita cara. Perdi quem fazia meus nós em gravatas, mas ficou a sua lição de que a boa política é importante demais —prometo pensar nisso em tudo que fizer na vida.

Vai ficar sempre na boca o gosto do macarrão com sardinha da infância do meu filho. Até qualquer hora, pai.​

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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