ONG pede investigação do comando da polícia no massacre do Jacarezinho

Human Rights Watch diz que analisou documentos, relatos e imagens e enviou recomendações ao Ministério Público

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Rio de Janeiro

A ONG Human Rights Watch enviou um relatório ao Ministério Público do Rio de Janeiro nesta segunda-feira (31) pedindo que o órgão investigue não só os agentes que participaram pessoalmente da operação que terminou com 28 mortos na favela do Jacarezinho mas também o comando da Polícia Civil.

"Os promotores deveriam examinar a possível responsabilidade criminal e civil dos comandantes por ações ou omissões antes, durante e após a operação, incluindo a provável destruição de provas importantes. Além disso, deveriam investigar se os comandantes avaliaram adequadamente os riscos para os policiais envolvidos na operação", diz o texto de dez páginas.

Como a Folha mostrou, inquéritos civis contra comandantes se tornaram recentemente um instrumento de cobrança após operações no RJ. Eles são uma alternativa não excludente aos inquéritos criminais, que exigem provas mais robustas para responsabilização perante os tribunais, segundo especialistas.

A Human Rights Watch sugere que seja apurada também a responsabilidade do Secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski, argumentando que de acordo com a legislação nacional a Promotoria pode conduzir esse tipo de inquérito por improbidade administrativa.

Segundo a organização, a legislação define esse crime como “qualquer ação ou omissão que viole os deveres [dos servidores públicos] de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições” e define punições como demissão e multas.

O MP-RJ disse à ONG e à Folha que abriu uma investigação na área civil para apurar se houve descumprimento da determinação do STF (Supremo Tribunal Federal) que restringiu operações policiais a casos excepcionais no estado, na chamada ADPF 635 ou ADPF das Favelas.

Na área criminal, a Human Rights recomenda também que a Promotoria investigue eventuais delitos de fraude processual por destruição de provas, diante dos indícios de que policiais removeram corpos da comunidade, e que o Ministério Público Federal (MPF) apure se os comandantes cometeram o crime de desobediência em relação à decisão da Corte.

Em voto no último dia 21, o ministro Edson Fachin defendeu incluir o MPF e eventualmente a Polícia Federal em parte da apuração. A Procuradoria também já havia enviado um ofício com recomendação nesse sentido à Promotoria estadual, que rejeitou a ajuda e disse que já tem uma força-tarefa.

Além do MP-RJ, a Human Rights Watch enviou seu relatório a Fachin e aos demais ministros do STF, à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a comitês das Nações Unidas, entre outras autoridades.

'ABUSOS DE DIREITOS HUMANOS'

No texto, a organização diz que examinou registros de ocorrência da polícia, documentos dos hospitais e judiciais, depoimentos de testemunhas e imagens de cadáveres e encontrou "evidências críveis de graves abusos de direitos humanos".

Afirma que várias testemunhas relataram a execução de ao menos três suspeitos e que quatro dos seis presos na operação disseram ter sido agredidos por agentes. Um deles narrou o assassinato de duas pessoas na sua frente e de duas outras pessoas, segundo a Defensoria Pública. Dois detentos contaram que foram obrigados a carregar mais de dez corpos para o "caveirão".

"Fotos e vídeos gravados por moradores fornecidos à Human Rights Watch pela seção do RJ da Ordem dos Advogados do Brasil [OAB] parecem mostrar vários cadáveres imóveis no chão, sobre poças de sangue, incluindo um homem com o rosto coberto de sangue. As fotos e vídeos mostram os corpos sozinhos, sem policiais ou profissionais da saúde", diz trecho.

Entre os indícios de remoção de cadáveres, a ONG cita ainda que um dos mortos tinha a face “totalmente dilacerada” e que ao menos 25 das 27 vítimas civis já chegaram sem vida aos hospitais —contradizendo por exemplo a versão que cinco policiais deram nos boletins de ocorrência, de que quatro delas teriam morrido nas unidades de saúde.

"Em um caso com duas vítimas, os bombeiros foram chamados para a 'remoção de cadáver' do local, segundo a declaração de um policial. Mas, contradizendo-se, o mesmo oficial comunicou que as vítimas foram atingidas e morreram 'no hospital'", detalha o texto.

De acordo com a Human Rights Watch, nos casos de baleados em que não é possível chamar os serviços de emergência ou os bombeiros, como prevê a legislação, a polícia deve pedir a um parente da vítima ou testemunha para acompanhá-los na remoção, o que supostamente não ocorreu em nenhum dos casos no Jacarezinho.

A organização criticou ainda a qualidade dos registros de ocorrência. "Os investigadores escutaram apenas 29 policiais [...] e as declarações carecem de informações cruciais, como onde as vítimas morreram. O registro da declaração conjunta de nove policiais relata sete mortes, mas sequer informa como as vítimas morreram".

Os documentos também mostram que foram apreendidas apenas 26 armas de policiais no dia da operação para análise balística e só mencionam perícia em dois locais com três mortes, deixando de fora outros 11 locais com 24 mortes, segundo a ONG.

Por fim, o relatório repudia novamente a decisão da Polícia Civil de impor sigilo de cinco anos sobre todas as investigações relacionadas a operações realizadas no estado desde junho de 2020, data da limitação imposta por Fachin.

"Sem justificar detalhadamente porque o alto grau de sigilo é necessário e proporcional em relação ao direito de acesso à informação, a decisão [...] parece uma tentativa de ocultar informações do escrutínio público. Uma autoridade independente deveria revisar a decisão de classificar as informações como reservadas."

Na sexta (28), o PSB (Partido Socialista Brasileiro) e organizações da sociedade civil que participam da ação que corre no STF pediram que a Corte afaste o sigilo genérico, argumentando que ele é "gravemente incompatível com o direito fundamental de acesso à informação". A solicitação ainda não foi julgada.

Em nota, a Polícia Civil afirmou que o "objetivo é preservar informações para que o vazamento ou divulgação não prejudiquem próximas etapas dos procedimentos investigatórios" e que o sigilo não cabe aos órgãos responsáveis pela investigação, que "continuam tendo amplo acesso a todas as informações, de forma a garantir a transparência e a eficácia dos procedimentos em andamento".

Sobre o relatório da Human Rights Watch, disse que o MP-RJ está investigando a retirada dos corpos e que "cabe ao referido órgão aguardar o término da investigação, à qual sequer teve acesso, para emitir opinião, respeitando assim a legislação em vigor no país, bem como as instituições empenhadas nas investigações".

O Ministério Público respondeu apenas que "todos os depoimentos, inclusive dos policiais envolvidos, serão tomados no procedimento criminal que investiga as circunstâncias das mortes ocorridas na operação".

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