Descrição de chapéu Folhajus

Polícia ocultou provas que inocentam advogado dos sobreviventes da chacina de Pau D'Arco, diz OAB

Massacre completa 4 anos sem que nenhum dos réus tenha sido condenado pela morte de 10 trabalhadores rurais

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Daniel Camargos
Repórter Brasil

“Fui preso para prejudicar a investigação dos mandantes da chacina de Pau D’Arco”. A denúncia é de José Vargas Júnior, advogado dos sobreviventes do massacre que afirma estar sendo vítima de uma armação da Polícia Civil e do Ministério Público. Sua prisão vem sendo questionada por órgãos internacionais e nacionais, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que acusou a polícia de ter ocultado provas que o inocentariam.

O massacre completa 4 anos nesta segunda (24), sem que nenhum dos 16 réus —policiais civis e militares— tenha sido condenado pela execução de 10 trabalhadores rurais sem-terra, que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no Pará. “Todos estão soltos e seguem trabalhando”, diz Vargas, em referência aos policiais que, segundo ele, andam pela cidade encarando as testemunhas que os acusam.

Policiais militares mataram 10 trabalhadores rurais sem-terra, que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no Pará (Avener Prado/Folhapress)
Policiais militares mataram 10 trabalhadores rurais sem-terra, que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, no Pará (Avener Prado/Folhapress) - Avener Prado/Folhapress (26.05.2017)

Neste ano, o caso ganhou novas proporções. Em janeiro, um dos sobreviventes da chacina e considerado a principal testemunha, Fernando Araújo dos Santos, foi assassinado com um tiro na nuca.

Semanas antes, ele afirmou à Repórter Brasil estar sendo ameaçado por policiais. Também em janeiro, o advogado da defesa das vítimas da chacina foi preso por conta de mensagens irônicas que enviou por WhatsApp, sob acusação de envolvimento em outro caso de homicídio.

Durante os 25 dias em que ficou na cadeia, Vargas (agora em prisão domiciliar) começou a considerar que estaria sendo vítima de uma armação —suspeita que ele diz ter confirmado após ter acesso à íntegra dos áudios usados pela Polícia Civil e pelo Ministério Público Estadual para pedirem sua prisão. O acesso às provas pela defesa ocorreu somente 113 dias após sua prisão.

Com a transcrição completa em mãos, a defesa do advogado se deu conta de que o diálogo que o teria incriminado tinha 567 mensagens pelo WhatsApp —a polícia e o MP consideraram apenas 12 para basear a prisão de Vargas, o equivalente a 2% da conversa.

“[Houve] Uma clara ocultação de provas por parte das autoridades persecutórias durante a fase investigativa”, disse o advogado Marcelo Mendanha, presidente da OAB de Redenção (PA) e responsável pela defesa de Vargas. Ele se refere ao fato de a Polícia Civil e o MP terem ignorado o restante da conversa, em que havia provas para inocentá-lo.

Mendanha diz ainda que os órgãos investigadores não levaram em conta o tom irônico e as piadas ditas por Vargas para incriminá-lo. “A polícia permite que a gente faça qualquer tipo de ilação contra ela, pois ocultou provas que inocentam o Vargas”, afirma Mendanha. “O pedido de prisão foi feito sem apresentar ao juiz a íntegra dos áudios”.

Com base nos áudios completos, a OAB de Redenção entrou com um habeas corpus na sexta-feira (14), pedindo o fim da prisão domiciliar, a suspensão do processo e a nulidade da extração das conversas de WhatsApp realizadas pela Polícia Civil.

Além da OAB, acompanham o caso de Vargas a ONU e mais de 20 organizações, como Front Line Defenders, Anistia Internacional, Comissão Pastoral da Terra e a Apib, que denunciaram a prisão.

Contudo, a desembargadora relatora do habeas corpus negou o pedido de liminar, e a audiência de instrução (para escutar a defesa) prevista para terça (18) foi suspensa sem que fosse definida uma data.
Placa de assentamento, na região onde ocorreu a chacina, foi alvejada por diversos tiros durante ataque de pistoleiros no fim de 2020 (Cauê Angeli/Repórter Brasil)
Placa de assentamento, na região onde ocorreu a chacina, foi alvejada por diversos tiros durante ataque de pistoleiros no fim de 2020 (Cauê Angeli/Repórter Brasil) - Cauê Angeli/Repórter Brasil

Diálogos ignorados

Colega de Vargas, Marcelo Borges também está preso, acusado de ter tramado o desaparecimento e a morte de Cícero José Rodrigues, candidato a vereador de Redenção e presidente de uma associação de pessoas com epilepsia.

Cícero desapareceu em 20 de outubro. Um mês depois, a Justiça bloqueou R$ 270 mil na conta da prefeitura em resposta a um processo movido pela associação presidida por ele. Borges começou a ser então investigado. A tese da polícia e da promotoria é a de que ele e Vargas teriam participado da morte de Cícero para ficar com os recursos.

A denúncia que levou à prisão dos dois advogados usa apenas 12 das 567 mensagens que eles trocaram sobre a morte de Cícero e desconsidera ironias e o tom jocoso da fala entre colegas.

Contudo, foram ignorados na denúncia trechos que mostram a preocupação de Vargas com as denúncias que Cícero fizera ao MPF (Ministério Público Federal) sobre suposta corrupção na prefeitura de Redenção em contratos de compras de cabines de desinfecção de Covid na cidade, com uso de verbas da União. “Acho que vai ter que falar para a PC [Polícia Civil] que ele estava atrás daquela empresa”, diz Vargas.

Outro trecho desprezado pela denúncia é quando Vargas então avisa Borges que iria informar a coordenadora do núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Pará, Juliana Oliveira, sobre o sumiço de Cícero.

Logo depois, diz que ela irá acionar a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Pará. De fato, o deputado estadual Carlos Bordalo (PT), integrante da comissão de direitos humanos, pediu celeridade nas investigações do desaparecimento de Cícero.

Procurados, o Ministério Público do Pará e a Polícia Civil do Pará não responderam. O MP informou que o promotor responsável pela denúncia de Vargas, Leonardo Caldas, não atua mais na promotoria de Redenção. Leia a íntegra das notas.

‘A polícia quer te pegar’

Vargas diz que sabia ser vítima de uma injustiça, mas que realmente tinha sido irônico de uma maneira inadequada. “Carregava a culpa de ter feito uma piada infeliz”, afirma. Porém, começou a receber recados na prisão. “Doutor, como você dá um vacilo desse? A polícia toda quer te pegar”, disse a ele um agente penitenciário.

Quando teve acesso à íntegra da conversa, percebeu que estava em curso uma perseguição da polícia para impedir que seu trabalho levasse à descoberta dos mandantes de Pau D’Arco.

O advogado se tornou uma pedra no sapato dos poderosos da região. Moveu ações contra grandes grupos econômicos, como na defesa dos kayapós contra mineradoras e ganhou ação emblemática de trabalhadores sem-terra contra a JBS.

A mesma polícia apontada por Vargas como responsável por tirar as mensagens de contexto para prendê-lo é suspeita de ter assassinado a principal testemunha da chacina de Pau D’Arco no mesmo dia que o advogado deixou a cadeia, 26 de janeiro.

Fernando Araújo dos Santos era a testemunha com mais detalhes sobre o massacre. Ele viu a polícia humilhar e torturar seus colegas, viu seu namorado ser executado e teve de fingir que estava morto para escapar. Antes de ser assassinado, disse à Repórter Brasil: “Sinto que tá vindo coisa pesada pra nós aqui”.

Desde a chacina, uma ordem de despejo para retirar os trabalhadores sem-terra segue em vigor a pedido da família Babinski, que se diz proprietária da área e que foi alvo de busca e apreensão na investigação do massacre. Apesar dos indícios de que a polícia agiu em associação com os fazendeiros, a investigação nunca foi concluída pela PF ou pelo MP.

O despejo, segundo os assentados, deve acontecer quando a pandemia acabar. Enquanto isso, as 200 famílias que retomaram a ocupação vivem sob ameaça. “O risco que corremos é acabar como o Fernando”, afirma Manoel Gomes Pereira, presidente da associação dos moradores.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmava que as conversas haviam sido extraídas pela PF (Polícia Federal). A extração foi feita pela Polícia Civil. O texto foi corrigido.

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