Milícia visa retorno financeiro e capital político com expansão imobiliária irregular, diz sociólogo

Venda de imóveis é o principal mercado em crescimento operado por grupos paramilitares

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Rio de Janeiro

Além do retorno financeiro gerado a partir da venda de imóveis irregulares, milicianos que atuam no Rio de Janeiro visam também um ganho simbólico: o acúmulo de capital político junto às pessoas que vivem em regiões dominadas por eles. É o que afirma o sociólogo José Cláudio Alves, que estuda as milícias há mais de duas décadas.

Enquanto atividades historicamente exploradas por grupos paramilitares, como a cobrança de taxas de segurança, geram reatividade na população, que se sente prejudicada, a venda de imóveis dá a esses grupos criminosos uma “expressão beneficente”, aponta o professor.

“[O mercado imobiliário] É mais estratégico, traz um prestígio político, social. Há o ângulo político, uma fidelidade em termos de votos, e os valores que se consolidam naquela comunidade: você [o miliciano] como um benfeitor, um homem de bem que ajuda a população”, diz Alves à Folha.

Investigados há anos pela Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro, os negócios imobiliários das milícias passaram a chamar a atenção da sociedade civil após o desabamento de um edifício na Muzema, zona oeste da cidade, em abril de 2019, resultando na morte de 24 pessoas.

Na madrugada desta quinta-feira (3), outra construção irregular caiu em Rio das Pedras, zona oeste da cidade, matando dois moradores, sendo uma criança.

Ambas as regiões são controladas por grupos milicianos. Em maio, a Polícia Civil cumpriu mandados de busca e apreensão contra integrantes da milícia que vende imóveis irregulares e empresas utilizadas para a lavagem do dinheiro, que pode chegar a R$ 12,4 milhões.

Segundo informações iniciais da polícia, o edifício que desabou nesta madrugada foi construído há mais de 20 anos por familiares que moravam no local e não teria ligação com a milícia. Ainda assim, a Polícia Civil informou que montou uma força-tarefa para investigar o desabamento e o possível envolvimento de milicianos.

Apenas em 2021, o programa Linha Verde, do Disque Denúncia, já recebeu 555 chamados sobre construções irregulares em todo o estado, não necessariamente relacionadas às milícias. Ressalta-se, porém, que os cinco bairros com maior número de denúncias na capital estão localizados na zona oeste, berço dos grupos paramilitares no Rio.

As milícias são geralmente formadas por quadros das polícias Militar e Civil e dos Bombeiros. Na capital, se concentram principalmente na zona oeste e, no estado, na Baixada Fluminense.

Em seu início, nos anos 2000, as milícias obtinham lucros principalmente em cima da extorsão dos moradores de comunidades por meio da venda de segurança, de gás e do acesso à TV por assinatura. Nos últimos anos, estenderam seus tentáculos e hoje atuam em outras frentes, como na exploração do mercado imobiliário.

O sociólogo José Cláudio Alves afirma que os milicianos têm uma percepção muito clara sobre as demandas da população desassistida pelo governo e lucram em cima dessas carências. “Eles estão dentro do estado e têm o melhor diagnóstico de todos. Montam uma estratégia de ocupar esse espaço, que vira um mercado”, diz.

“Rio das Pedras vem de uma grande ocupação urbana. É uma área com muita demanda, muito migrante, gente pobre querendo sair do aluguel. O aluguel é um entrave absoluto, e a milícia sabe disso”, afirma.

Segundo ele, o maior atrativo para a população é a forma de pagamento, parcelado por muitos anos para mascarar a ilegalidade. A lavagem do dinheiro, de acordo com o sociólogo, fica a cargo de empresas de fachada, depósitos de bebidas, lojas de material de construção e de compra e venda de automóveis.

Para Alves, a venda dos imóveis tende a ser uma fonte de renda permanente e em expansão para as milícias, dada a ausência de política habitacional efetiva no país. “A cobrança de taxas no comércio é um tanto estática, até recua porque o comércio sofre com a crise, como a pandemia. A tendência imobiliária não, as pessoas estão sempre buscando sair do aluguel.”

Levantamento realizado pelo Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pelo Observatório das Metrópoles, divulgado no início do ano, sugere que a legalização de empreendimentos imobiliários irregulares pela Prefeitura do Rio de Janeiro vem favorecendo a expansão do mercado imobiliário em áreas sob o domínio armado das milícias.

Mapa elaborado pelo grupo com dados da Secretaria Municipal de Urbanismo, coletados entre 2009 e 2019, mostra que o maior número de unidades legalizadas pela prefeitura está na zona oeste, em bairros controlados por milícias. Entre as regiões administrativas com mais de mil legalizações no período, apenas uma não é dominada por grupos paramilitares.

“O urbanismo miliciano se vale da conivência das prefeituras, do suborno, da cooptação ou de ameaças de uso de violência de fiscais, da inserção de milicianos nas casas legislativas e em cargos de confiança do Poder Executivo, além do suporte, em diferentes níveis, das polícias civil e militar”, diz o estudo.

A pesquisa também ressalta que a grilagem praticada por milicianos não é discreta e sugere que as autoridades fingem não enxergar as ilegalidades.

“É preciso (...) comprovar a efetiva utilização da área para que, posteriormente, ela possa ser legalizada. Faz-se necessário o uso de pesados maquinários, trabalhando em ritmo diuturno, visando o preparo da terra para as construções, no intuito de uma imediata ocupação”, afirma o texto.

À reportagem Alves ressalta que órgãos de controle do Rio de Janeiro, como a prefeitura, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o Inea (Instituto Estadual do Ambiente), o Ministério Público e a Polícia Civil, falham na fiscalização das construções irregulares. “Para desabar, tem que primeiro construir. O desabamento é a prova de que os milicianos são vitoriosos, bem-sucedidos.”

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