Na pandemia, LGBTQIA+ se unem nas periferias para combater a fome e a pobreza

Preconceito contra essa população agrava ainda mais os impactos da crise econômica

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Lucas Veloso
São Paulo | Agência Mural

No Jardim Alegria, a 48 km do centro de São Paulo, a assessora financeira Larissa Raniel, 36, atua desde o início da pandemia para conseguir alimentos para quem precisa. Mensalmente, ela consegue atender cerca de 120 pessoas em Francisco Morato, na Grande São Paulo.

Apesar da distribuição de refeições para os mais pobres ser independente de gênero e orientação sexual, Larissa admite que pessoas como ela estão mais vulneráveis com a pandemia. “Nós já sofremos preconceito só pelo fato de ser quem a gente é”, diz.

Larissa é uma mulher trans e sempre buscou apoiar moradores da cidade que, além da crise econômica, convivem com outros problemas por conta do preconceito. “Sofremos pela falta de oportunidade de trabalho formal. O desemprego está aí para todos, imagina pra nós, população LGBTQIA+ que vive nas periferias”, afirma.

Em casa, Larissa teve apoio da mãe em seu processo de transição de gênero, mas sabe que essa não é uma realidade para a maioria. “Muitas famílias, em vez de nos acolher, preferem nos jogar nas ruas”, diz.

Larissa Raniel,36, tem promovido desde o início da pandemia distribuição de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade em Francisco Morato, na Grande São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Levantamento da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), feito em 2017, já mostrava que a idade média desse grupo ao ser expulso de casa pelos pais era de 13 anos. Com dificuldade para entrar no mercado de trabalho, 90% de travestis e transexuais só tinha a prostituição como fonte de renda.

Com a pandemia, a situação dessas pessoas ficou ainda mais delicada, dizem lideranças comunitárias e moradores LGBTQIA+.

Na cidade de São Paulo, os Centros de Cidadania LGBTI viram aumentar a procura por ajuda. No espaço Edson Néris, na zona sul, o atendimento, que era de 100 pessoas por mês, dobrou na pandemia, segundo informações da UNAS (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), que faz a gestão do local.

Em maio do ano passado, um estudo produzido por demógrafos da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) em parceria com o coletivo #VoteLGBT mostrou que a falta de renda, a piora na saúde mental e o afastamento da rede de apoioforam os principais impactos da pandemia na comunidade.

Ainda de acordo com a pesquisa, é necessário oferecer apoio emocional, social, financeiro e político a essas pessoas para mudar o atual cenário. Nas periferias, coletivos têm atuado neste sentido.

É o caso das Travas da Sul, organização criada por e para pessoas LGBTQIA+, que atua em distritos com população mais vulnerável na capital paulista, como Grajaú e Parelheiros.

O grupo tem ações voltadas à cultura, saúde, entretenimento, educação e economia colaborativa nos bairros. Com a pandemia, teve de priorizar o combate à fome e o atendimento das necessidades mais urgentes da população dessas regiões.

Produtor Cultural e morador do Jardim Eliana, no Grajaú, Diogo Emanuel da Silva, 27, é um dos integrantes do coletivo. Ele diz que, apesar de ter feito ações online durante a pandemia, como saraus, a prioridade foi a distribuição de cestas básicas e kits de higiene a partir da parceria com ONGs.

“A pandemia escancarou uma realidade que há muito tempo pessoas periféricas vivenciam, como a carência de políticas públicas aliada a falta de acesso à saúde, emprego e moradia”, diz.

Para entender o cenário da pobreza na região e na comunidade LGBTQIA+, em abril, a Travas criou um formulário online para descobrir o que as pessoas mais precisavam.

Ao todo, foram mais de 500 participantes, sendo a maioria formada por negros, inclusive heterossexuais. O levantamento mostrou que as travestis e transexuais estavam desempregadas, vivendo na informalidade e dependendo de doações de alimentos para o sustento. Por conta disso, foram priorizadas na fila para receber auxílio.

No Cantinho do Céu, extremo sul da cidade, mora a multiartista Luana Uchoa do Nascimento, 30, pessoa trans não-binária (que não se identifica com nenhum dos gêneros) e uma das beneficiárias das doações da Travas.

Luana diz que o aumento das contas de água e luz e o reajuste de preço dos alimentos a fizeram pedir apoio ao grupo. “Pude me beneficiar e ver as manas também usufruindo desse meio de política social.”

Sem ajuda do poder público, o coletivo diz ter distribuído mais de mil cestas básicas desde o ano passado em parceria com outras entidades, como Casarão Brasil, Casa Chama e A Bordar Espaço Terapêutico.

Diogo afirma que morar na periferia aumenta as desigualdades na comunidade. “Já sofremos dentro do recorte de gênero e sexualidade, isso só se agrava quando esses corpos ocupam diferentes recortes de vulnerabilidade, como raça e classe”, comenta. “Como ser bicha preta e periférica em paz?”, questiona.

Em São Bernardo do Campo (ABC), a Casa Neon Cunha tem mobilizado ativistas da região no Jardim Silvina, na periferia da cidade. O espaço leva o nome da designer que chegou a pedir direito a morte assistida se o direito de mudar de nome não fosse aceito.

“Comida para todes” é o nome da campanha que recebe, articula e distribui itens aos mais vulneráveis nos bairros mais pobres da cidade. Entre os critérios de prioridade, estão a transgeneridade, a cor da pele e integrantes da população LGBTQIA+.

Segundo os números da entidade, no ano passado foram mais de 2.700 cestas doadas, entre alimentos e produtos de higiene e limpeza, além do apoio a outras 200 pessoas em situação de extrema vulnerabilidade.

Apesar de todo o trabalho realizado, em 7 de junho, a casa protocolou requerimento no Ministério Público contra a administração do prefeito Orlando Morando (PSDB) pela falta de políticas públicas para a população LGBTQIA+, sobretudo neste período de pandemia.

Questionada, a Prefeitura de São Bernardo disse que trabalha para melhorar a qualidade de vida desta população, como atualização de banco de dados para nortear demandas futuras. Citou que respondeu ao Ministério Público os questionamentos apresentados pela Casa Neon Cunha, com esclarecimentos e toda a documentação que comprova a adoção de políticas públicas direcionadas à população LGBTQIA+.

Já a Prefeitura de São Paulo informa que os cinco centros de cidadania seguem em funcionamento durante a pandemia e que os espaços foram a principal medida de redução dos impactos negativos neste período.

A gestão Ricardo Nunes (MDB) ainda diz que 11.700 cestas básicas foram distribuídas, somente neste ano, pelos cinco espaços da cidade. Em 2020, foram cerca de 5.780 cestas básicas às famílias. Entre os beneficiados, segundo a prefeitura, estão artistas, DJs e boates afetadas pela pandemia.

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