Descrição de chapéu

O crime de existir

Caso de Matheus Ribeiro, acusado de furto e depois de receptação, revela o racismo pelas mãos do Estado e de seu seletivo sistema penal

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Vera Lúcia Santana Araújo

É advogada, integra a Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia-ABJD e é ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno-FMNDFE

"Vida de negro é difícil, é difícil como o quê

Lerê, lerê..."

O legado musical de Dorival Caymmi embalou trilha sonora de novela ambientada na longeva escravização da gente negra no Brasil, criando tamanha identidade com aquelas narrativas, que podemos falar em sinonímia entre o universo escravagista e a música do baiano de singular poética.

Desde os tempos evocados na cantoria até os dias presentes, a República Federativa do Brasil do texto constitucional de 1988, que tanto acalentou os sonhos de um país em rompimento com os horrores da ditadura militar, a qual encheu de esperanças as populações quilombolas viventes sob a invisibilidade, a realidade demonstra à exaustão que a vida de negros e negras segue difícil. Lerê, lerê...

Na recorrência diária da morte por atacado pela pandemia de Covid-19, entre a matança de crianças e jovens negros nas periferias das grandes e médias cidades, aos massacres que matam em larga escala, temos desnudado um Estado que declara guerra a 56% de sua população. Esse é o índice de pretos e pardos no Brasil, de acordo com dados do IBGE.

A decantada Constituição Cidadã veda expressamente a pena de morte, excetuando a situação de guerra declarada –art. 5º, inciso XLVII, “a”–, sendo certo que somente há guerra contra nação estrangeira, não havendo sustentação para o cenário das guerras propagandeadas pelas mídias, sensacionalistas ou não, chanceladas por agentes públicos do sistema de Justiça –Ministério Público, magistratura nos diversos níveis–, invadindo lares e espaços comunitários, banalizando e conferindo normalidade ao cotidiano da violência pública que expropria o futuro da juventude negra em números que expõem um quadro de genocídio anterior mesmo ao meio milhão de mortos em quinze meses de pandemia.

Imagens de câmeras de segurança,  flagram a ação de Igor Martins Pinheiro, de 22 anos, levando o veículo na tarde do dia 12 de junho, a ação demorou menos de dois minutos. A bicicleta pertence a Mariana Spinelli e Tomás Oliveira, e estava presa com cadeado na porta do Shopping Leblon, na Zona Sul do Rio
Imagens de câmeras de segurança, flagram a ação de Igor Martins Pinheiro, de 22 anos, levando o veículo na tarde do dia 12 de junho, a ação demorou menos de dois minutos. A bicicleta pertence a Mariana Spinelli e Tomás Oliveira, e estava presa com cadeado na porta do Shopping Leblon, na Zona Sul do Rio - Reprodução

Ante a criminalização dos corpos negros que majoritariamente ocupam as covas rasas –os pobres, agora miseráveis por força do insaciável capital predatório que marginaliza a classe trabalhadora–, uma ocorrência policial no Leblon, bairro branco da cidade do Rio de Janeiro, envolvendo o jovem negro Matheus Ribeiro, traz elementos interessantes à reflexão acerca do quão cruel é o racismo nas suas mais diversas formas de manifestação, notadamente pelas mãos do Estado e seu seletivo sistema penal.

Matheus é instrutor de surfe, atividade profissional que o leva a transitar no território branco do Rio de Janeiro, qual seja, a Zona Sul, e foi ali que um jovem casal que traz o privilégio da branquitude o avistou numa bicicleta bem cotada, sendo este fato o suficiente para a pronta acusação de que o veículo lhe pertencia e teria sido roubado pelo invasor da região. É assim o reconhecimento de uma pessoa negra nos bairros da nobreza.

Matheus Ribeiro, negro, instrutor de surf, esperava a namorada na tarde de sábado (12) em frente ao Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, quando foi abordado por um casal branco que o acusou de roubar sua própria bicicleta elétrica
Matheus Ribeiro, negro, instrutor de surf, esperava a namorada na tarde de sábado (12) em frente ao Shopping Leblon, no Rio de Janeiro, quando foi abordado por um casal branco que o acusou de roubar sua própria bicicleta elétrica - Reprodução

Incontestável a motivação racista para a acusação. Se o mesmo objeto estivesse sob a condução de um igual, nenhuma suspeita recairia. Matheus mostrou ser proprietário da “bike” e denunciou o crime de racismo contestado pela autoridade policial, mas ele sabe, todas, todos sabemos, que a acusação e a exposição sofridas se assentam na sua existência que traz o tipo penal da negritude.

Dias seguintes um jovem loiro, de aparência assemelhada à dos donos dos poderes, foi flagrado com o bem do casal. Segundo a mídia, o rapaz tem várias passagens por delegacias, inclusive por furto e/ou roubo de outras cobiçadas bicicletas.

Sendo a nossa trilha o "lerê, lerê", não temos um final feliz para Matheus, agora investigado, isso mesmo, por crime de receptação! Sua bicicleta, adquirida num site de vendas, seria produto de outro roubo. Longe ainda do último capítulo, a história do jovem de periferia que mostrou talentos e encontrou apoio para desenvolver suas habilidades na arte de driblar as ondas, esbarra nos “caldos” do racismo, para adotar termo próprio do jargão surfista.

Duplamente suspeito –de furto e depois de receptação de uma bicicleta–, Matheus vive saga que faz sobressair requintes da crueldade de como os operadores do sistema de segurança concorrem no entrelaçamento com os sistemas de justiça e prisional, num encadear de condutas que mostram a resistência da sociedade brasileira, suas instituições e poderes, em conferir eficácia e efetividade aos princípios constitucionais que situariam o país num outro patamar civilizatório, reafirmando sua guerra declarada contra negros e negras. Que o diga a família de Kathlen, a quem foi aplicada a pena capital pelo crime de existir.

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