Transgêneros amarelos lidam com racismo da comunidade LGBT e transfobia de comunidades asiáticas

Relatos apontam xenofobia, padrão em que o 'gay ideal' é branco e resistência dentro de famílias tradicionais

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São Paulo

Yumie Thomas enfrentava uma depressão tão profunda aos 16 anos que chegou a pesquisar na internet formas de se suicidar. No meio dessa busca, acabou encontrando uma carta escrita pela adolescente americana transgênero Leelah Alcorn antes de tirar a própria vida. “Me descobri trans lendo uma carta de suicídio”, conta o produtor de arte, que até então acreditava que, para se identificar como homem, precisava necessariamente passar pela cirurgia de redesignação sexual.

Embora sua experiência seja similar à de inúmeras pessoas que não se identificam com o sexo biológico com que nasceram, existem particularidades vivenciadas apenas por pessoas trans amarelas—como são classificados os grupos étnico-raciais do Leste e Sudeste Asiático e seus descendentes no Brasil.

“A parte mais próxima do Japão com que eu tive contato parou de falar comigo quando eu me assumi lésbica. Eu frequentava a comunidade nikkei [de descendentes de japoneses] no Rio, onde moro, mas me sentia muito julgado. Aí nunca mais fui”, conta Thomas, que hoje tem 23 anos.

Descendente de holandeses, indígenas e japoneses, a estilista paulista Teodora Oshima, 31, também diz ter sentido resistência da parte asiática da família. Como a relação com seu pai “já não era muito verbal”, a revelação de que se identificava como mulher trans se deu por email.

“Ele nunca respondeu, mas sempre perguntava de mim para minha mãe e minha irmã”, conta, ressaltando que isso não significa que ele não a aceite. “Não enxergo como algo proposital. Ele demonstra amor de outras maneiras. São duas barreiras, a da masculinidade e a da cultura japonesa."

Para Rodrygo Tanaka, fundador da página Asiáticos pela Diversidade no Facebook, não se pode ignorar o conservadorismo que existe dentro das comunidades de imigrantes e descendentes, mas também é preciso entender os fatores culturais e históricos que essas instituições carregam. “O principal desafio continua sendo a dupla luta: contra o racismo e a xenofobia que existem dentro da comunidade LGBT e contra a LGBTfobia que existe dentro das nossas comunidades raciais”, diz Tanaka.

“Eu vivi durante muito tempo nesse meio gay tóxico, que é muito xenofóbico, racista, gordofóbico”, conta a jornalista paulista Gui Takahashi, 34, que, na época, era preterida pelos homens, muitos dos quais colocavam em aplicativos de encontro que “não curtiam pessoas amarelas”.

A jornalista Gui Takahashi, 34 - Danilo Verpa/Folhapress

“Como existe uma certa hegemonia racial dentro da comunidade LGBT, em que o branco é o corpo universal, o ‘gay ideal’ é o gay branco”, explica o cineasta Hugo Katsuo, que pesquisa a representação de corpos amarelos na pornografia ocidental. “Nos parâmetros que temos atualmente, a masculinidade branca é a ideal, a asiática é emasculada e a negra extrapola os níveis considerados aceitáveis."

Depois da transição, no entanto, Gui Takahashi diz ter conhecido “o outro lado da moeda”, passando a ser muito mais procurada: “Mas era muito com essa fala de objetificação e fetichização, tanto pela questão trans como pela racial."

A designer gráfica carioca Yuki Hayashi, 28, relata experiência semelhante. “Eu saí desse lugar de não desejo que ocupava quando era um menino gay e passei a receber assédio de homens, muitos deles casados, me procurando para realizar fantasias, sempre no sigilo, nesse lugar do fetiche mesmo”, conta ela, que se considera lésbica e namora uma travesti negra desde a época em que as duas se identificavam como homens gays —elas passaram juntas pelo processo de transição.

O fotógrafo Narumi Tsuruta, 34, revela ainda outra camada do preconceito. Nascido no Japão e criado em São Paulo, ele diz que, por ter sotaque, algumas pessoas tentam corrigir os artigos e pronomes que usa. “Acham que estou falando português errado, dizem ‘você tem que falar obrigada, obrigado quem fala é homem’”, conta. “Eu compreendo que é uma luta diária, mas parei de pensar nisso porque minha masculinidade não depende dessas coisas."

O fotógrafo Narumi Tsuruta, 34 - Danilo Verpa/Folhapress

Por muito tempo, Narumi não conseguia descrever as agressões que sofria, tanto em termos raciais quanto de gênero. “Eu sentia que não tinha lugar de fala. Embora preconceito não se compare, não conseguia chamar o que passava de racismo, porque negros sofrem mais. Também não podia reclamar de transfobia, porque mulheres trans sofrem mais."

Foi esse sentimento de desamparo que o motivou a produzir e vender diários de transição —cadernos para registrar as mudanças corporais e organizar os sentimentos ao longo da terapia hormonal— e criar o perfil Transasiáticos (@transasiaticos) no Instagram, junto de Yumie Thomas.

Já Oshima, a estilista, contou com o apoio da designer Hayashi, única pessoa amarela que ela conhecia que estava passando pela mesma experiência. Hoje em dia, as duas se identificam como travestis. "Eu não conheço nenhuma pessoa trans que trabalhe em equipe de estilo. Tive sorte porque entrei no mercado antes de ter transicionado. Eu era vista como homem gay, aí era aceita. Se fosse depois da transição, talvez eu não tivesse nem conseguido entrar no mercado”, diz.

Gui Takahashi conta que sempre quis trabalhar com moda, mas, por pressão da família, acabou se formando em direito. Após fazer um curso de jornalismo de moda, conseguiu entrar no mercado que sempre almejou, especializando-se também na área da beleza. “Por estar num mercado que tem muitos cabeleireiros e maquiadores LGBT, não senti tanto esse preconceito e não tive muita dificuldade para me inserir, mas imagino que outros segmentos sejam bem piores”, diz.

“Historicamente, quando falamos nessas pessoas, pensa-se em salão de beleza. O mercado da beleza é onde somos bem-vindas”, diz Gabriela Augusto, fundadora da Transcendemos, consultoria que tem como principal objetivo ajudar outras organizações a se tornarem mais inclusivas.

Ela ressalta a importância de se investir na capacitação dessa população, que muitas vezes não consegue terminar os estudos porque precisa sair de casa muito cedo, devido ao preconceito da família. “A exigência das vagas é alta, aí você acaba esbarrando em várias outras questões sociais”, diz.

Além da representatividade no mercado de trabalho, Hayashi aponta também a importância de ter se enxergado na tela do cinema na figura de Julia Katharine, 44, protagonista e corroteirista de “Lembro mais dos Corvos” (2017), filme a que assistiu no início de seu processo de transição. “Foi a primeira vez que eu vi uma travesti de ascendência asiática no cinema, algo que nunca tinha nem pensado que existia”, conta.

Primeira realizadora trans a ter um filme exibido em circuito comercial no Brasil, Katharine acredita que corpos como o seu precisam ser naturalizados nas telas. “Gostaria de conviver mais [com a comunidade], mas eu me sinto um pouco excluída por ser uma pessoa trans, tenho muito medo da rejeição, do abandono, de não ser compreendida”, explica.

Para o cineasta Hugo Katsuo, não basta colocar esses corpos nas telas. É preciso pensar também em formas de apresentá-los que não os reduzam apenas a violência, racismo, LGBTfobia. “Não que essas denúncias não devam existir, mas elas não podem ser a única forma de representação desses corpos. Precisamos entendê-los como pessoas que têm anseios, felicidade e sonhos como qualquer ser humano.”

“Temos uma mania muito grande de ver tudo de forma muito separada: no âmbito racial só se debate raça, no de gênero só se debate gênero, no de orientação sexual só se debate orientação sexual. Para construir algo que abarque essa pluralidade de vivências, precisamos entender as coisas de uma forma menos segmentada”, defende.

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