Verticalização nos eixos de transporte privilegiou classes mais altas

Objetivo de Plano Diretor era promover adensamento misto e inclusivo próximo a infraestrutura urbana

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Casas de em Pinheiros resistem à verticalização estimulada pelo Plano Diretor Estratégico de São Paulo Eduardo Knapp/Folhapress

São Paulo

Em suas primeiras páginas, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo afirma estabelecer “a defesa de um projeto de cidade democrática, inclusiva, ambientalmente responsável, produtiva e, sobretudo, com qualidade de vida”.

Uma das principais estratégias que o PDE traçou para chegar a essa cidade é o adensamento na região dos Eixos de Estruturação e Transformação Urbana, comumente chamados de ZEUs.

A lógica é que, onde há investimento público em transporte coletivo, estimula-se a construção de moradia, colocando, assim, mais gente perto de onde se investiu em infraestrutura urbana.

Mas, quase sete anos após a aprovação e sanção do PDE, em 31 de julho de 2014 —e em pleno debate sobre se ele deve ou não passar pela revisão prevista por lei para 2021, por causa da pandemia—, o que se verifica é que o adensamento levou aos eixos de transporte mais cidadãos de classes altas do que de baixas.

Entre 2014 e 2018, 18,1% das unidades habitacionais lançadas em São Paulo estavam em ZEUs. De 70 mil unidades habitacionais surgidas nesses eixos entre 2014 e 2020, menos da metade, 27 mil, são HIS (habitação de interesse social).

Ainda assim, as HIS se destinam a famílias com renda familiar bruta de até R$ 3.300,00, na faixa 1, e entre R$ 3.300 e R$ 6.600, na 2. Os valores já apontam para uma distorção, considerando que a renda média domiciliar brasileira em 2020 foi de R$ 1.380.

As críticas ao modelo surgem tanto entre pesquisadores quanto em moradores das ZEUs.

Para Beatriz Rufino, professora de planejamento urbano e regional na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o que o plano fez foi estimular o acesso de classes mais altas aos eixos de transporte.
Embora o PDE permita, por meio da “cota parte”, mesclar unidades menores e maiores em um mesmo edifício, em tese favorecendo a diversificação de tipologias e moradores, para Rufino isso não se deu a contento.

"Muitas vezes você tem unidades menores, mas não com metro quadrado mais barato. Em bairros como Pinheiros, em que o metro quadrado já é alto, ele se torna ainda mais alto no eixo.”

As mudanças propostas pelo Plano Diretor também acabaram colidindo com o interesse de moradores que gostariam de preservar a características dos bairros onde vivem —e que Rufino também vê como um grupo que tinha privilégios até aqui.

grupo com cartazes de papel, em frente a rua com casinhas
Mobilização de moradores contra a pressão de incorporadoras para que vendam suas casas em Pinheiros, zona oeste de São Paulo - Rosanne Brancatelli/Divulgação

Moradora desse bairro da zona oeste, a publicitária e fotógrafa Rosanne Brancatelli vê a região mudar. A rua onde fica sua casa, a Estela Sezefreda, está a duas quadras da estação Fradique Coutinho da linha 4-amarela do metrô. Com a sucessão de obras, ela liderou uma mobilização contra os empreendimentos.

Sua rua forma, com a Pascoal del Gaizo e a Dr. Phidias de Barros Monteiro, um pequeno miolo de casas encravado entre as ruas Mateus Grou e Virgílio de Carvalho Pinto. Por estar em ZEU, rapidamente passou a ser alvo de incorporadoras.

“Eu, que sou amiga de todos os vizinhos —ou melhor, eu era— fui conversando”, conta. Sua intenção era evitar que assinassem compromisso de compra e venda que permitiria a construção de três torres com apartamentos de 180 m² no local.

Ela fez circular um abaixo-assinado entre moradores e comerciantes da região. Conseguiu até investidores dispostos a comprar casas de quem queria vender para incorporação, a fim de evitar que o quadrilátero de cerca de 5.000 m² se verticalizasse.

Por ora, o assédio cessou. Brancatelli faz questão de explicar que não é contra a verticalização em si, mas, pelo que vê, a diversificação defendida no PDE não se verifica na região.

Ela descreve a arquitetura dos novos prédios. “Um caixotão embaixo, de estúdios de 26, 30, 36 m², até o quinto andar. Depois, sobem as torres, com apartamentos de 140, 200, 260 m². Qual o fulano que mora num apartamento de 260 m² que vai pegar metrô?”

Para Brancatelli, o que se dá em Pinheiros “é um aproveitamento do PDE para as construtoras, nada a ver com a classe trabalhadora e os eixos de transporte”.

Sua percepção encontra eco nas pesquisas de Beatriz Rufino.

“Se não houver ação mais direta que garanta essa acessibilidade, você vai reproduzir aquilo que assegura o interesse do mercado imobiliário, mantendo uma hierarquia. Em Pinheiros eu faço um produto mais caro, na zona leste, faço um produto mais acessível, mas estruturalmente não mudo nada”, diz, lembrando que os empregos estão concentrados no centro expandido da cidade, o que reforça a necessidade de adensar.

Para Rufino, “parece óbvio que, se eu tenho no eixo apartamentos de perfil elitizado, nem sempre as pessoas vão andar de ônibus”. Mesmo se não tiverem carro, “vão andar de aplicativo”.

Ainda assim, houve alguma interferência positiva do Plano Diretor no acesso ao transporte por populações de menor renda.

A aprovação de unidades habitacionais com até 35 m² nos eixos cresceu quase 500% no período de 2014-2018, em relação ao período 2009-2013. O número de HIS licenciadas no eixo foi de zero, em 2014, para 8.897, em 2020.

"Quem mora fora do centro expandido vive 11 anos a menos, é cruel a prefeitura jogar essa população mais para a ponta. A gente precisa rever os instrumentos existentes para melhorar esse tipo de ação da cidade”, diz o secretário municipal de Urbanismo e Licenciamento, Cesar Azevedo.

Na opinião da urbanista Rufino, a simples estratégia de adensamento em ZEUs não combate de forma suficiente a questão da desigualdade de equipamentos públicos.

A discussão, diz, não pode se limitar ao Plano Diretor. “Para enfrentar esses problemas precisaria de outras formas de atuação, para combater essas desigualdades."

O arquiteto e ex-vereador Nabil Bonduki (PT), que foi relator do PDE na Câmara, vai no mesmo sentido.
“O Plano Diretor criou um sistema de planejamento que é indispensável em uma cidade do tamanho de São Paulo”, porém, diz, “a gestão não o implementa como estabelecido”.

O PDE, explica Bonduki, “pensa as cidades ‘de avião’”. Mas não desce ao nível da rua. Para isso, define uma série de instrumentos de planejamento que deveriam ser implantados a fim de garantir a eficácia do que ele estabelece.

“Implementar é dar seguimento a tudo que o PDE propõe: planos setoriais, planos regionais, aplicar as leis, como notificar imóveis ociosos, fazer corredores de ônibus, ciclovias, projetos habitacionais, plano de desenvolvimento econômico na periferia.”

Em 2016, quando foi aprovada a Luos (Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação de Solo), que complementa e regulamenta aspectos do PDE, “foram feitas algumas excepcionalizações em determinadas zonas que estavam dentro do eixo [em ZEUs]”, diz Bonduki.

Planos de bairro, propostos no PDE, mas pouco usados, poderiam ter criado, na Luos, zonas de proteção especial, contemplando especificidades de lugares como aquele em que mora Rosanne Brancatelli.

Salvo por contadas exceções, como um trecho da Vila Madalena, também na zona oeste, não foi o que houve. “Não foram excluídas determinadas áreas onde as pessoas gostam de morar em casas, o que explica o problema dessas quadras do entorno da Mateus Grou e outras de miolo de bairro”, diz Bonduki.

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