'Em 2022, tudo o que não vou querer é me dedicar aos livros', diz repórter de cultura

Em pesquisa Datafolha, 5% dos ouvidos afirmam que pretendem diminuir leitura no próximo ano

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São Paulo

Em algum dia entre a segunda e a terceira semana de março de 2020, uma parcela significativa dos brasileiros trancou-se em casa. Medo da morte, sua e de familiares e amigos, saudade dos parentes e da vida social, temor pelo futuro, notícias de um vírus mortal e imagens de filas de caixões na televisão.

Nesse cenário é difícil manter a concentração exigida para ler livros. Por outro lado, os mais concentrados esfregaram na cara dos avoados e ansiosos pelos quatro cantos da internet que, sem as horas perdidas no trânsito e as aproveitadas na happy hour, sobrava mais tempo para experimentar novas receitas culinárias e enfrentar “Guerra e Paz”, o caudaloso —estamos falando de mais de 2.000 páginas— romance histórico de Tolstói sobre a Rússia durante as guerras napoleônicas.

Pressionada, prometi que leria, finalmente, o “Ulisses” que jaz na estante, cotejando com o original comprado em uma viagem a Dublin dez anos atrás. Apenas 550 páginas em letras miúdas traduzidas por Antonio Houaiss, afinal.

Mais de um ano depois, 59% dos entrevistados pelo Datafolha dizem estar lendo livros. Isso é mais do que os que dizem estar assistindo a reality shows (44%) e mais do que os que estão fazendo atividade física (56%), e sabemos que muitos de nós aumentamos ou mesmo mentimos no quesito “estou me exercitando”.

Em julho de 2020, na primeira edição da pesquisa, também eram 59% os que afirmavam estar lendo livros na pandemia, dos quais 23% diziam ter aumentado a leitura e apenas 7%, diminuído. Então, eu estaria incluída nesse grupo, dos que estavam lendo, porém menos. A cada página virada eram cinco ou dez minutos para voltar à história depois de ter deixado escapar o fio da meada para gráficos e mapas de casos e mortes.


Se me perguntassem, em julho do ano passado, se eu pretendia aumentar ou diminuir a minha leitura após a pandemia e a vacinação, como fez a pesquisa, eu diria, como 13% dos entrevistados, que aumentaria. Leria na praia, no ônibus, no banco da praça.

A pandemia ainda não acabou. E agora, passados 15 meses, 19% dos ouvidos pelo Datafolha dizem que pretendem aumentar a quantidade de leitura no ano que vem, 35% acreditam que ficará igual e 5% pretendem diminuir os livros lidos no próximo ano.

Recuperada a minha capacidade de leitura nos últimos meses, eu mudei de lado. Junto-me aos 5%. Confiante no Carnaval e no São João de 2022, e na Páscoa, e no Corpus Christi e no 9 de Julho e em todos os feriados, não vou querer mais ler. Chega de ler, chega de ficar sentada ou deitada. Vou nadar na praia, conversar com o motorista do ônibus e abraçar cachorros na praça.

Não são, porém, os mesmos 59% os leitores do começo da pandemia e de hoje. Em 2020, quando as famílias ainda buscavam se adaptar à vida com crianças fora da escola e home office e as mulheres foram soterradas pelos trabalhos domésticos, 58% delas diziam estar lendo livros, contra 60% dos homens. E eram mais numerosos os leitores entre os que não têm filhos, 66% contra 53% dos que têm.

Agora, são 66% das mulheres lendo livros e 51% dos homens, voltando à tendência já apontada em pesquisas sobre perfis de leitores brasileiros, como a Retratos da Leitura no Brasil, de que elas leem mais que eles. Também reduziu a diferença entre aqueles que não têm filhos e os que têm, 61% contra 58%, empatados na margem de erro, de 4%.

No início da pandemia, porém, os jovens estavam lendo mais. Eram 69% dos entrevistados entre 16 e 24 anos os que diziam estar lendo livros em julho de 2020. Ali, 33% deles afirmavam estar lendo mais, mas 25% diziam que pretendiam diminuir a leitura com o fim da pandemia. Agora, caiu para 53% os jovens que dizem estar lendo. Foi a maior mudança entre os grupos etários. Talvez porque os primeiros meses de pandemia foram de poucas aulas ou nenhuma.

Depois de todo esse tempo, porém, as duas edições de “Ulisses” seguem intocadas por aqui. Até, quem sabe, a próxima pandemia.

Úrsula Passos

Jornalista, é mestre em filosofia pela USP e em estudos de gênero pela Universidade Toulouse Jean Jaurès.

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