Estátua de Borba Gato em São Paulo causa polêmica desde a inauguração

Autor da escultura, Júlio Guerra já questionou status de obra de arte do monumento

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São Paulo

Não é de hoje que a estátua de Borba Gato, em São Paulo, causa polêmica estética. O próprio autor da escultura, Júlio Guerra, já contestou o título de obra de arte do monumento esculpido em gesso, pedras de segunda e argamassa numa época em que o bronze era o material preferido para aquele tipo de trabalho.

Em entrevista à Folha em 7 de fevereiro de 1963, poucos dias após a inauguração do gigante de cerca de 13 metros de altura (com o pedestal), Guerra disse que Borba Gato talvez “não seja uma obra de arte”. Ainda assim, declarava-se satisfeito com o que tinha feito.

“No meu trabalho, procurei fazer uma estátua que alcançasse o povo, que fosse por ele entendida”, disse. “Penso que isso consegui, e é o que mais me interessa.”

Antes de o fogo ameaçar o monumento no último sábado (24), reacendendo o debate sobre símbolos que exaltam pessoas ligadas à escravidão, à colônia e a outros temas sensíveis para o Brasil, a figura já causou outros sentimentos.

Na década de 1960, moradores de Santo Amaro disseram ser “um monumento de primeira ordem”. Para outros, seu formato pitoresco, seus traços grosseiros e os 40 mil kg mostravam um boneco gigante a olhar indiferente para a cidade, uma representação muito distante daquela vivida pelos bandeirantes.

Foram seis anos até que a estátua ficasse pronta. Ela começou a ser construída em 1957, após a aprovação em um concurso público promovido pela Prefeitura de São Paulo em comemoração ao 4º centenário de Santo Amaro, como uma forma de celebrar o bairro que já foi um município.

A proposta de Guerra foi selecionada por alguns motivos. Conforme defende Márcia Maria da Graça Costa em “Lugares da Memória do Bairro de Santo Amaro: a Estátua de Borba Gato”, o primeiro deles foi seu currículo, que conta com premiações e parcerias consagradas, como com Victor Brecheret.

O ponto principal, diz Costa, foi o fato de o monumento homenagear um bandeirante, figura que “se ajustava ideologicamente ao imaginário paulista”, algo exigido pelo concurso.

“Ao escolher a figura do bandeirante para homenagear, o aniversário de Santo Amaro transforma-se em mais um narrador da mitologia, transmitindo e renovando o imaginário do bandeirante”, afirma.

A exaltação do bandeirante como herói, uma imagem fomentada na história da sociedade paulista, também criou o debate sobre a pertinêcia de homenagear tais figuras.

Isso porque, em suas expedições em busca de pedras preciosas, as chamadas bandeiras, os sertanistas eram conhecidos por escravizar indígenas. Algumas expedições tinham como único objetivo apreender indígenas para usar como mão de obra escrava.

Por isso, monumentos em homenagem aos bandeirantes são alvo frequentes de críticas.

Em 2008, quando o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) completou 18 anos, o Cedeca (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente) fez uma intervenção no Borba Gato, com o objetivo de chamar a atenção para a violência contra indígenas. Em frente ao monumento, foram colocadas três estátuas de indígenas, com os dizeres “Sou gente, tenho direitos” no pedestal.

Em 2015, um grupo pichou a estátua com manchas vermelhas e as palavras "bandeirante, ruralista e assassino”. Já em 2016, o Borba Gato e o Monumento às Bandeiras, localizado em frente ao Parque do Ibirapuera, receberam um banho de tinta.

No ano passado, a ameaça de uma possível derrubada da estátua fez com que a subprefeitura de Santo Amaro solicitasse a instalação de gradis ao redor do bandeirante, além de o monumento ter sido vigiado 24 horas por dia pela Guarda Civil Metropolitana.

Foi nessa época que ocorreram os protestos contra o racismo em diversas cidades pelos Estados Unidos, após a morte do americano George Floyd. Monumentos em homenagem a pessoas ligadas à escravidão no país foram derrubados, iniciando uma onda que foi seguida em vários locais pelo mundo, como no Reino Unido.

No Brasil o debate é antigo, mas se fortaleceu após as manifestações de junho e julho de 2020.

Em 2001, o então vereador Nabil Bonduki apresentou um projeto de lei para suprimir as referências aos bandeirantes que estão esculpidas no mármore da Câmara Municipal de São Paulo. A proposta foi arquivada.

Vinte anos depois, a vereadora Luana Alves (PSOL), propôs outro PL com finalidade semelhante: substituir monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens que façam menções a escravocratas e eugenistas.

No ano passado, a deputada estadual Érica Malunguinho (PSOL) apresentou um projeto de lei que proíbe homenagens a escravagistas em São Paulo. O objetivo é que estátuas e monumentos sejam armazenados em museus estaduais.

Na Câmara, as deputadas federais Taliria Petrone (PSOL) e Áurea Carolina, e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB), apresentaram um projeto que proibiria homenagens a proprietários de escravos, traficantes de escravos e pensadores que defenderam e legitimaram a escravidão em monumentos públicos.

Os projetos aguardam votação, mas têm poucas perspectivas de aprovação.

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