Estátuas de figuras controversas resistem no Reino Unido e na Bélgica

Governo britânico defende 'manter e explicar'; em Bruxelas, comissão discute destino de monumentos

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Bruxelas

Um ano depois de terem sido cobertas de tinta vermelha, derrubadas, pichadas e atacadas, estátuas de figuras históricas controversas resistem em seus pedestais no Reino Unido e na Bélgica, dois dos países europeus em que esses protestos ocorreram após a morte de George Floyd, em maio de 2020.

Uma das poucas figuras que perderam o lugar foi a de Edward Colston, derrubada e jogada por manifestantes no rio Avon, em Bristol, na Inglaterra. Comerciante, Colston foi um dos grandes responsáveis por construir a cidade no início do século 18, doando várias escolas e hospitais.

Muito de seu lucro, porém, veio do tráfico de escravos, o que lhe rendeu a ira dos ativistas. Pescada do lodo em que afundou, a estátua agora será exposta num museu local, após cuidadoso banho e meses de restauro.

A discussão é semelhante à que ganhou visibilidade no Brasil com o incêndio da estátua de Borba Gato, no dia 24. O monumento, polêmico desde a inauguração, é contestado por seu valor estético e histórico, já que homenageia um bandeirante apontado como escravagista e assassino de indígenas e negros – embora nem todos concordem com essa visão.

Estátua de um homem de terno e cabelos curtos é vista em nicho no alto de uma fachada
Estátua de Cecil Rhodes na fachada do Oriel College, na Universidade de Oxford - Andy Couldridge - 11.jun.2020/Reuters

Outro alvo de ativistas na Inglaterra, o busto do aristocrata Cecil Rhodes na Universidade de Oxford já sobrevive há seis anos ao movimento Rhodes Deve Cair, iniciado na África do Sul —onde ele é tido como inspirador do apartheid.

Sua estátua na entrada do Oriel College, em que estudou, é consequência de uma doação milionária à instituição após sua morte, em 1902.

Dono da companhia de diamantes De Beers, Rhodes foi acusado de anexar terras e contribuir com a morte de milhares de africanos quando foi primeiro-ministro da região colonizada pelos britânicos.

No mais novo capítulo da história, no mês passado, cerca de 150 professores se recusaram a dar aulas no prédio depois que a reitoria da instituição declarou que Rhodes continuaria em seu lugar.

Em vez de descompor a fachada, a escola se comprometeu a investir em bolsas de estudo para estudantes sul-africanos e melhorar a inclusão de alunos negros e de minorias étnicas, entre outras iniciativas —como um debate anual sobre o impacto das ações de Rhodes.

A permanência foi elogiada pelo governo britânico: “Devemos aprender com nosso passado, em vez de censurar a história, e continuar a nos concentrar na redução da desigualdade”, escreveu em rede social o ministro da Educação, Gavin Williamson.

Mais que um elogio isolado, a gestão do primeiro-ministro Boris Johnson anunciou em janeiro medidas legais para aumentar a proteção aos monumentos e “ajudar as pessoas a lidar com todos os aspectos da história britânica, sejam bons ou ruins".

Um dos principais gatilhos desse contra-ataque, baseado em “manter e explicar”, foi a pichação no ano passado de uma estátua do ex-primeiro-ministro Winston Churchill como “racista”, o que levou a um embate nas ruas entre ativistas do Black Lives Matter e grupos de ultradireita.

Há algumas semanas, até a rainha Elizabeth 2ª entrou no ringue da política identitária, também na Universidade de Oxford: alunos do Magdalen College, irritados com a permanência de Rhodes, tiraram da parede um retrato da monarca, dizendo que ela simbolizava a história colonial.

“É preciso salvar os monumentos dos militantes ‘woke’", disse o ministro da Habitação, Robert Jenrick, usando o termo recuperado recentemente de “stay woke” (fique desperto), usado desde os anos 1930 por ativistas negros nos EUA para indicar consciência sobre injustiça social e racial.

O público britânico de forma mais ampla continua alheio às discussões sobre racismo estrutural, imperialismo, descolonização e cancelamento, embora elas tenham ganhado espaço inédito na mídia, segundo estudo publicado em maio pelo Instituto de Políticas Públicas do King´s College de Londres.

O levantamento, coordenado pelo professor Bobby Duffy, diretor do instituto, mostrou que textos jornalísticos sobre “guerras culturais” passaram de cerca de 100, em 2015, a mais de 800 no ano passado, em veículos britânicos. A cobertura dessa questão no próprio Reino Unido saltou de 21 textos para 534 —quase 3 a cada 2 dias.

Apesar disso, segundo pesquisa do instituto Ipsos feita em parceria com a universidade, mais de 60% da população diz não ter ouvido nada ou muito pouco sobre “cultura de cancelamento” ou “política de identidade”.

Quando questionados sobre o que lhes vinha à mente quando ouviam o termo “guerra cultural”, 43% responderam que a expressão não invocava nada em especial. O problema mais citado, raça/racismo, só apareceu em 14% das respostas, embora fosse o tema de 26% dos textos jornalísticos estudados.

Pouco mais de 1% vincula o termo ao movimento Black Lives Matter e menos de 1% fazem uma conexão com a remoção de estátuas, mostra o estudo do King’s College.

Duffy diz que o desinteresse da grande maioria do público pela “linguagem acalorada e pelo conteúdo das disputas da guerra cultural” reflete algo já visto nos Estados Unidos, onde discussões semelhantes vêm desde o século passado: “Esse tipo de conflito geralmente começa de cima para baixo, com mensagens de políticos e da mídia, que depois chegam à consciência pública, levando a uma divisão mais ampla”.

Em Londres, a prefeitura instituiu em fevereiro deste ano uma comissão de 15 membros com a missão de aumentar a diversidade refletida no espaço urbano não só em termos de raça mas de gênero, representação LGBTQIA+ e origem étnica.

A iniciativa havia sido anunciada no ano passado, dias depois da derrubada do monumento em Bristol.

Segundo a descrição de suas atribuições, o grupo vai discutir "quais legados devem ser celebrados" e fazer recomendações à administração municial. "A comissão não foi criada para remover estátuas", avisa o texto.

Na Bélgica, o principal alvo de manifestantes é Leopoldo 2º, que reinou de 1865 a 1909 e foi responsável pela morte de milhões de africanos nas décadas em que foi o proprietário da única colônia particular da história, onde hoje fica a República Democrática do Congo.

A política imperialista, porém, tornou a Bélgica ainda mais rica e poderosa, e homenagens ao “rei destruidor” foram erguidas em muitas cidades do país.

São quatro as figuras de Leopoldo 2º em Bruxelas, e todas foram atacadas em junho do ano passado. Com 5m de altura, a maiores delas, em frente ao palácio real, foi cercada por ativistas que a escalaram e derramaram sobre ela tinta vermelho-sangue. Um ano depois, o único vestígio do ato é uma mancha rubra que resiste na palma da mão direita da estátua.

Das outras três, uma não voltou a seu local de exposição, na praça do Soberano, em Auderghem. Após ser derrubada a marretadas por ativistas antirracismo, foi recolhida a um depósito da prefeitura para restauro e lá ficou.

No mesmo mês, o Parlamento nacional lançou uma comissão de verdade, reconciliação e reparações para examinar a atuação colonialista da Bélgica na África, e Bruxelas decidiu criar uma comissão para discutir o que fazer com suas estátuas.

Retirar das ruas homenagens a personagens racistas é uma das opções, mas “o principal é mostrar à comunidade negra que ela está sendo ouvida”, afirmou então à Folha o secretário de Urbanismo e Patrimônio de Bruxelas, Pascal Smet.

Além da derrubada de estátuas, a contextualização e a construção de monumentos, museus ou programas pró-inclusão são hipóteses discutidas pelos 16 membros do comitê, que inclui advogados, historiadores, jornalistas e professores e tem até o final deste ano para entregar seu relatório.

Em Auderghem, por exemplo, a prefeitura já afirmou que só vai dar um destino ao busto de Leopoldo 2º depois desses debates, se houver contextualização: "Caso contrário, será um sem-fim de ataques e recolocações".

Sandrine Ekofo, advogada de origem congolesa, e Georgine Dibua, coordenadora da Bakushinta —de promoção da cultura congolesa na Bélgica— fazem parte do grupo, assim como a antropóloga Bambi Ceuppens, do Museu África, que também se viu envolvido na discussão sobre as esculturas.

Palácio inaugurado em 1898 pelo próprio Leopoldo 2º com dinheiro da exploração de borracha, o museu tem milhares de objetos históricos e etnográficos, coleções de animais e minerais da antiga colônia, registros antropológicos e arte contemporânea africana.

Um busto do monarca feito de marfim está entre os artefatos exibidos, mas o que atraiu críticas foi outra estátua de Leopoldo 2º, no parque que cerca seus edifícios.

Dizendo-se “em processo de descolonização”, a direção do museu ressaltou que o parque não é sua responsabilidade, mas afirmou considerar “imprescindível contextualizar as estátuas de figuras polêmicas do período colonial”.

A obra do parque é precedida por uma placa que incentiva os visitantes a lerem mais sobre as questões que envolvem Leopoldo 2º, escaneando um QR Code. Ele leva a um texto do autor da escultura, que a apresenta como "anticolonial".

A comunicação da instituição diz reconhecer que o museu por muitos anos transmitiu "uma mensagem da supremacia ocidental, profundamente enraizada no racismo” e diz que seu objetivo é se afastar explicitamente do colonialismo e funcionar como fórum de opiniões e pontos de vista sobre a relação histórica, atual e futura com a África.

“Tudo passa, menos o passado”, dizem letras de aço brilhante no longo salão que se segue à catraca do museu em Tervuren.

Já o secretário Smet, de Bruxelas, inverteu a direção ao ser pressionado para apressar uma decisão sobre as estátuas da região: “O debate será conduzido de forma serena, sem precipitação. Muitas pessoas em Bruxelas têm um passado comum, mas acima de tudo temos um futuro comum”.

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