Descrição de chapéu Afrofuturismo já

Escola aproxima gerações com educação antirracista

Iniciativas visam autonomia de alunos negros e engajamento da comunidade

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São Paulo

Crianças da escola municipal Saint’Hilaire, na periferia de Porto Alegre, têm aulas semanais de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena. A disciplina é parte do currículo, como manda a lei, mas integra um movimento maior: o Afroativos.

Idealizado pela professora Larisse Moraes, 38, o projeto surgiu em 2017, para brecar conflitos causados por bullying e racismo entre alunos do ensino fundamental, e também responde à curiosidade dos estudantes negros sobre sua ancestralidade.

“Aulas sobre escravidão, engenho... Cansei de não ouvir a história das pessoas negras contadas de outro ponto de vista”, diz Alisson Silva, 16, que conheceu o Afroativos aos 13.

A iniciativa envolve mais de 300 pessoas, entre alunos da Saint’Hilaire e integrantes da comunidade. Sua produção mais conhecida é o Calendário Afroafirmativo, que apresenta marcos da cultura afro historicamente afastados de estudantes negros e não-negros.

Na foto, a professora Larisse Moraes, idealizadora e coordenadora do Afroativos, a professora Maiza Lemos, 65, griote do Afroativos, Ketllyn, 12, aluna do 7º ano na EMEF Saint'Hilaire e Alisson, 16, monitor do projeto - Jardiel Carvalho/Folhapress

O projeto implementa a educação para as relações étnico-raciais por meio de aulas semanais em 11 turmas da educação infantil e do fundamental, de um grupo de estudos no contraturno escolar e de outro, formado por mães, avós e ex-alunos –como Alisson, que hoje cursa o ensino médio e é monitor do projeto.

“Antes, não via que meu cabelo é bonito. Não conseguia olhar no espelho e falar com orgulho: sou preto”, diz.

“A educação é eurocentrada. Referências únicas tiram a oportunidade de criação de repertório”, diz Janine Rodrigues, diretora da Piraporiando, startup que cria conteúdos didáticos antirracistas.

Reforçar aspectos positivos da negritude é ponto central da missão, afirma a educadora. Narrativas múltiplas, defende, expandem horizontes tanto de alunos negros quanto de não-negros. Ao mostrar que produção de conhecimento não é exclusividade da Europa, a educação ajuda jovens a valorizar sua ancestralidade.

Com 27 anos de experiência em salas de aula, a professora Ana Gilda Leocadio, 51, vê o ensino público como um espaço de muita potência em razão da diversidade, mas falho no atendimento de necessidades de estudantes negros. “A escola pública é um quilombo, mas não se reconhece como tal.”

Gilda afirma ter presenciado atos de racismo entre colegas e ouvido alunos negros com autoestima abalada, sem vontade de aprender. Hoje, ela leciona inglês para turmas do fundamental em escolas na periferia da capital paulista e faz contação de histórias no contraturno das aulas.

É preciso partir do que é familiar para educar, diz Ivan Siqueira, do Conselho Nacional de Educação e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. Alfabetizar em uma comunidade ribeirinha, diz, exige materiais diferentes dos usados na periferia de uma metrópole. O importante é que o processo contemple o multiculturalismo.

O ensino de história e cultura afro-brasileira e africana é obrigatório no país desde 2003. “Falta a sociedade como um todo abraçar a responsabilidade de levar referências múltiplas à escola”, diz Ivan. Para ele, é fundamental aproximar a teoria das vidas dos jovens, em especial dos negros, que são maioria entre os que largam a sala de aula.

Dados do IBGE mostram que, dos 50 milhões de jovens brasileiros, 20,2% não concluíram alguma das etapas do ensino básico —o equivalente a 10,1 milhões de pessoas, sendo 71,7% pretas e pardas.

Alcançar os alunos é a preocupação central de Rita Suely, 53, professora na rede pública de Lauro de Freitas, na região metropolitana de Salvador (BA). Coordenadora da escola municipal Mercedes do Espírito Santo, ela criou um projeto de alfabetização a partir da obra de Conceição Evaristo, escritora brasileira que aborda o cotidiano da mulher negra no país.

A escolha de Evaristo veio para potencializar a participação das mães e também pelo conceito criado pela autora de “escrevivência’’—a escrita que nasce no dia a dia, nas memórias e experiências de cada um. “O objetivo é desenvolver o processo de escrita das crianças, para que elas saibam usar as palavras a partir da sua realidade”, diz Rita.

Quando implementada de fato, a educação antirracista não se encerra em sala de aula, mas tem impacto sobre a comunidade, como ocorreu na casa de Ketllyn Vieira, 12, aluna do sétimo ano da Saint’Hilaire. Antes, estudava em colégio particular, onde era uma das poucas alunas negras.

A menina notou a diferença assim que mudou de escola: “No primeiro dia em que fui com o cabelo solto, todo mundo me elogiou. Quando soltei meu cabelo uma única vez no outro colégio, fui recebida com piadinhas e tudo de mau que vocês possam imaginar”.

Com o lema “solte o cabelo e prenda o preconceito”, o Afroativos resgata signos da cultura afro, recupera a autoimagem dos integrantes e os valoriza intelectualmente. “Nossos cabelos são motivo de conexão. Se algo deve estar preso, que seja o preconceito, a intolerância e o racismo”, diz a professora Larisse.

Na escola, Ketllyn conta que, inspirada em autoras como Conceição Evaristo, ganhou confiança para escrever seus próprios poemas. Seu preferido é o “Sonhei”, sobre a pandemia, escrito em parceria com a mãe, Daniela Vieira, 35.

Mulher negra na frente de um fundo vermelho, vestindo uma blusa azul
Conceição Evaristo, autora brasileira que criou o conceito de ‘escrevivência’, a escrita que nasce das experiências cotidianas - Folhapress

Com a filha, Daniela diz ter aprendido que pessoas negras também descendem de rainhas, reis, princesas e príncipes africanos. “A gente acha que os adultos sabem tudo, mas outra pessoa mais nova pode dar uma nova visão para eles”, afirma Ketllyn.

Maiza Lemos, 65, conheceu o Afroativos a partir da neta Maraia Oliveira, 18. Ela conta que escrevia desde garota, primeiro para imaginar histórias que queria viver, mas não podia e, depois, para expressar suas observações da realidade. “Os escritos eram uma fuga para minhas frustrações.”

Larisse convidou Maiza para integrar o projeto como “griote”, pessoa cujo papel é, em algumas culturas africanas, transmitir conhecimento e tradições às novas gerações.

O intercâmbio geracional rompe um ciclo marcado pelo racismo, diz Maiza: “Ver que estamos conseguindo é um marco histórico para mim. Estou redescobrindo muitas coisas. Posso dar o passado de contribuição, mas eles estão me dando um mundo novo”.

As ações do Afroativos inspiraram iniciativas em outros estados, como o projeto Vista Minha Pele, desenvolvido em uma escola quilombola no município de Iaciara (GO).

A professora Larisse ressalva que a educação antirracista deve ir além do currículo festivo e de datas comemorativas, e envolver toda a comunidade escolar o ano inteiro.

“O cumprimento das leis não pode e não deve estar condicionado às professoras negras, aos professores negros, aos coletivos negros, nem às pessoas com empatia pela causa. Precisa ser entendido como um projeto de nação.”

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