Lei de cotas depende de ajustes para democratizar mais a universidade

Medida que abriu campi a milhares de jovens em desvantagem tem revisão prevista para 2022

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São Paulo e Belo Horizonte

A política de cotas reduziu a desigualdade no ensino superior brasileiro, ampliou o debate sobre racismo e levou diversidade até os cursos mais elitizados. Perto de completar uma década, a lei depende agora de uma revisão capaz de assegurar o processo de transformação das universidades brasileiras.

Especialistas apontam a necessidade de fortalecer os programas de auxílio estudantil, que foram criados por decreto, em 2010, para garantir a permanência de alunos pobres e negros nos campi.

“Pobre entrar na universidade é fácil, difícil é permanecer”, diz a estudante universitária Raiane Silva de Mendonça, 27. A jovem, que morou a vida toda no Ceará, entrou na UFPB (Universidade Federal da Paraíba) pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada) em 2016, com cotas étnico-raciais e sociais para cursar ciências das religiões.

“Minha mãe ia pagar meu aluguel só por três meses. Foi uma correria conseguir assistência estudantil”, contou.

Estudantes carregam bandeiras e um megafone  na reitoria da USP; Na parede, um cartaz diz: Onde estão os estudantes negros nas universidades? Cotas
Estudantes protestam por cotas raciais na reitoria da USP em 2012 - Caio Kenji/Folhapress

No início, Raiane optou pelo auxílio moradia, que lhe ajudou a pagar o pensionato. Mas seu foco era residência universitária, porque o valor da bolsa não acompanha a inflação. “Sobe aluguel, água, energia, aí você tem que se virar”, diz.

Abrir as portas do ensino superior público não garante retenção de alunos. “É preciso haver políticas que contribuam para a permanência desses estudantes’’, diz Georgia Macedo, assistente social na Pró-Reitoria de Assistência Estudantil da UFPB.

Os auxílios são oferecidos pelo Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), criado para minimizar efeitos das desigualdades. Inclui ações de assistência, como moradia, alimentação, transporte e creche.

O programa também visa melhorar o desempenho acadêmico e reduzir a evasão. Um levantamento da Unifal (Universidade Federal de Alfenas) constatou que o aluno pardo tem em média 30% mais chance de deixar os estudos que um não pardo. Com auxílio moradia e alimentação, as chances de evasão se igualam.

Hoje, o corte orçamentário desafia essa política. Em 2020, a UFPB recebeu R$ 27 milhões do Ministério da Educação para assistência ao estudante, valor que caiu para R$ 15,5 milhões neste ano.

“Estamos em um dos piores patamares dos últimos dez anos”, diz Wellington Lima, pró-reitor da Unifal. Em 2020, a universidade recebeu R$ 5,7 milhões. Em 2021, foram R$ 4,5 milhões —95% voltados a alimentação e permanência. Com o corte, a instituição reduziu o número de atendidos. Em dezembro de 2020, recebiam auxílio 725 estudantes. Agora, para fechar o ano no orçamento, o pró-reitor prevê 600 discentes assistidos.

A Lei de Cotas, sancionada em 2012, mudou o perfil do ensino superior público.

Estudo realizado pela pesquisadora Ursula Mello, do Institute for Economic Analysis, de Barcelona, em parceria com Adriano Senkevics, doutorando em educação pela USP, mostra que de 2012 a 2016 a participação de jovens de 18 a 24 anos pretos, pardos e indígenas e de baixa renda em universidades federais passou de 33,9% para 42,7% dos ingressantes.

A região Nordeste teve o maior aumento da participação desse grupo em universidades federais. Em 2012, 48,9% dos ingressantes no ensino superior dos estados nordestinos eram pretos, pardos ou indígenas, com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio. Quatro anos depois, o grupo já representava 60,2% (em uma região onde não brancos com renda inferior a um salário e meio representavam 73% do grupo de jovens de 18 a 24 anos em 2016).

A pesquisa tem outro achado importante: a Lei de Cotas vem mudando o perfil dos cursos mais concorridos, como medicina, engenharia elétrica e direito. Nos três casos, a presença de alunos não brancos, vindos de escola pública e de baixa renda girava entre 10% e 20% dos ingressantes em 2012. Em 2016, entre 20% e 40% estavam na mesma condição.

Na faculdade de medicina da Universidade Federal de Rondônia, por exemplo, a presença de alunos com esse perfil foi de zero (2012) a 37,8% (2016). “Podemos dizer hoje, com segurança, que os cursos com maior prestígio social foram mais transformados”, destaca Senkevics.

Parte da comunidade acadêmica se preocupa com a revisão prevista para 2022.

Na primeira versão da lei, o Executivo era o responsável por rever os critérios das cotas, via Ministério da Educação e Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (hoje ligada à pasta de Direitos Humanos).

Mas, em 2017, o então presidente Michel Temer tirou a responsabilidade do Planalto e deixou em aberto quem teria a função de avaliar a lei.

Para a advogada Bruna Santos, autora de um parecer sobre a revisão das cotas, o texto não dá margem para que o sistema deixe de existir caso não seja revisto. “Mas o melhor cenário para impedir qualquer tentativa de exclusão seria a instituição de uma nova lei.”

A Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial informou que tem feito parcerias com a Universidade Federal do Paraná e a Escola Nacional de Administração Pública para divulgar, ainda neste ano, avaliações sobre a política de cotas.

Especialistas defendem que os critérios para o ingresso por cota incluam a frequência no ensino público a partir do fundamental, e que o Censo, realizado a cada dez anos, seja substituído pela Pnad, anual, como base de dados populacionais. Há ainda preocupação com o que chamam de “super seleção dos cotistas”.

‘‘Os cotistas devem, primeiramente, disputar com estudantes da ampla concorrência e, caso não obtenham nota para passar, devem ser postos na categoria de vagas reservadas’’, defende André Lázaro, ex-secretário do MEC. “Se todo mundo que é negro só concorre por cota, você faz da cota o teto, e não o piso”.

Movimentos a favor das cotas também estão de olho em 2022 e lembram que, na campanha de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro mostrou intenção de mexer na lei.

Douglas Belchior, membro da Coalizão Negra por Direitos, afirma que, para além da defesa da legislação, a tarefa imediata é não retroceder.

A ativista Zélia Amador, do movimento negro no Pará, diz que as condições para falar sobre cotas, hoje, não são as melhores. “Em 2012, a conjuntura era mais favorável, apesar de que ninguém quer discutir raça, é sempre a contragosto.”

Paulo Paim (PT-RS) apresentou um projeto de revisão. “Quando se trata de política de cotas, é preciso ficar de olho. Na hora que os setores conservadores puderem, acabam com ela”, diz o único senador negro presente nos debates que antecederam a lei.

Naquelas discussões, pessoas contrárias ao recorte racial das cotas circularam um manifesto. Uma delas era a antropóloga Yvonne Maggie, professora emérita da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que diz manter sua posição, uma década depois, mas celebrar a democratização da universidade para pobres e negros.

“O que critico é que, para isso, tiveram que inventar, reforçar e colonizar a ideia de raça, a tal ponto que as pessoas se consideram felizes de estar nessa posição de dizer que um é negro e outro não é”.

Maggie se refere às comissões de heteroidentificação, instaladas de forma independente pelas universidades para evitar fraudes na autodeclaração racial dos ingressantes.

Também contrário às cotas, o deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) é um dos autores de um projeto de lei que pretende extinguir essas comissões. Ele diz que os critérios são subjetivos e contrariam a lógica de um país miscigenado. “Como julgar alguém que se autodenomina negro quando o critério é, justamente, o da autodenominação?”.

“Não se julga a pessoa, mas a validade do documento apresentado, a exemplo de um diploma de conclusão do segundo grau”, diz o professor Juarez Xavier, membro da Comissão de Autoverificação da Unesp (Universidade Estadual Paulista). E explica: heteroidentificação é um recurso combinado com a autodeclaração cuja função é assegurar direitos.

Ações afirmativas ao redor do mundo

Cerca de um quarto dos países têm algum tipo de ação afirmativa para aumentar a diversidade no ensino superior, seja por lei federal ou por opção das próprias universidades. Essas políticas variam entre critérios socioeconômicos, raciais e étnicos. A Índia, que tem políticas semelhantes às do Brasil desde 1950, tem a mais longa história de ações afirmativas baseadas em castas ou classes.

África do Sul e Malásia também são alguns dos países onde universidades possuem políticas de inclusão de alunos de etnias e raças com histórico de repressão por outros grupos sociais.

Nos Estados Unidos, universidades adotam ações afirmativas desde 1965, mas em 1978 a Suprema Corte americana proibiu que instituições adotassem cotas raciais em seus processos seletivos. Hoje, universidades públicas e privadas de vários estados mantêm ações de inclusão, mas sem utilizar sistema de cotas ou de bônus.

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