“Olha que coisa linda”, diz o apóstolo Estevam Hernandes diante das dezenas de pessoas com túnica branca que, sob seu comando, acabam de emergir das águas.
Após o líder contar até três e ordenar que mergulhem o corpo inteiro e levantem “em nome de Deus”, todos saem dali batizados. “Vamos dar uma salva de palmas para Jesus?”
Não é só Jesus que está de parabéns naquele sábado de muito calor e louvor na represa Billings, num trecho que margeia São Bernardo do Campo (SP). As pessoas que participam do batismo coletivo promovido pela Renascer em Cristo, igreja liderada por Estevam e sua esposa, a bispa Sonia Hernandes, também celebram um formato que veio para ficar.
Essas cerimônias, antes do vírus que num primeiro momento obrigou templos do mundo inteiro a fechar as portas, eram realizadas em tanques batismais (pequenas piscinas) na Renascer. Quando a primeira onda pandêmica deu sinais de definhamento, ainda em 2020, veio a ideia de batizar os calouros da fé em água corrente e ao ar livre, uma opção sanitária mais prudente do que o velho modelo.
Os fiéis gostaram tanto que a modalidade será mantida no pós-pandemia. “É tão impactante essa comunhão... As pessoas desejam muito que continuemos com essa atividade”, diz Daniel Tenuta, bispo da igreja.
Atacado e varejo. Pode soar paradoxal a princípio, mas grandes acontecimentos que renovam o pacto comunitário da fé —como um batismo em massa, uma Marcha para Jesus— e um evangelicalismo digital que customiza a experiência religiosa são duas correntes que devem sair fortalecidas da maior crise global em gerações.
A ascensão de novas vozes, não necessariamente ligadas a uma megaigreja consolidada, é outra marca que a pandemia imprimirá sobre as denominações evangélicas, segundo pastores com quem a Folha conversou. É a onda dos influencers desaguando no segmento cristão.
“Não precisa correr, minha filha, depois você cai, e eu tenho que orar para você ressuscitar”, brinca o apóstolo Estevam, protegido do sol com um boné onde se lê “reborn” (renascido), quando uma mulher dispara para tirar uma selfie com o parente recém-batizado.
Sobre o registro íntimo paira um drone pilotado pela equipe da Renascer. O equipamento captura de cima fileiras de gente vestida de branco na margem da Billings.
A imagem mostra como o fenômeno das redes sociais não só se incorporou não só à vida dos fiéis mas também forçou igrejas a modernizar sua comunicação para engajar o público. Quando cultos tiveram de migrar compulsoriamente para plataformas digitais, identificou-se uma necessidade de ir além da transmissão mais careta que por décadas marcou o televangelismo brasileiro.
É verdade que as igrejas já estavam correndo atrás de formatos mais interativos e dinâmicos, mais atentas às novas tecnologias. Ontem, o fiel precisava se deslocar ao templo físico se quisesse ouvir a pregação, e mesmo as grandes igrejas que compravam horários na grade televisiva se contentavam com enquadramentos simples, até amadores.
Para Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, o período serviu de despertador para quem ainda estava sonolento diante da revolução tecnológica.
“Muito pastor não dava atenção pra rede social, pra transmitir culto, pra sistemas eletrônicos de ofertas e dízimos. Depois da pandemia, vão ficar mais espertos”, diz. “Entraram numa pandemia sem estar preparados e sentiram o sarrafo, sentiram que deram muito mole de não usar redes sociais como eu aqui uso.”
O que a pane sanitária fez foi agilizar uma tendência já em marcha de consumir conteúdos religiosos em vários canais, do influencer cristão no TikTok ao aconselhamento pastoral no WhatsApp. Pastores passaram a perceber também que, se antes os cultos recebiam presencialmente dez, cem, mil pessoas, a depender do porte da igreja, o número de fiéis conectados quase sempre era bem maior.
Em junho, o pastor João Purin Jr. calculou que, em dia de casa cheia, sua Igreja Batista do Méier, no Rio, comportava 600 pessoas. “E estávamos, por culto [online], tendo mais de 1.200 visualizações. Você multiplica isso por duas ou três pessoas, já que uma visualização em geral dá mais de uma pessoa. Então imagina o alcance que a gente estava tendo. Inclusive gente de fora do Brasil.”
“Isso não tem volta”, diz o bispo Tenuta. “Já era previsto, mas a pandemia intensificou esse uso do ambiente online. As pessoas se acostumaram mesmo.”
Acostumaram-se, inclusive, a variar o cardápio de pregadores. “Nas nossas próprias redes, vimos um crescimento muito agressivo”, afirma. Ele acredita que o formato virtual atrai “pessoas de outras denominações, mas que gostam da pregação do apóstolo e da bispa”.
O contrário acontece também, claro —quem frequenta a Renascer pode entrar em contato com outras linhas doutrinárias. Congregações sem tanto alcance, que não possuem meios de comunicação como rádio e TV, ganharam projeção. Mais ou menos como um self-service da fé.
Já era previsto, mas a pandemia intensificou esse uso do ambiente online. As pessoas se acostumaram mesmo
O hábito de passear por diferentes igrejas já foi criticado por grandes pastores. Em 2012, a Folha esteve num culto em que o bispo Edir Macedo condenou, com a metáfora de “misturar vinhos”, a pessoa que segue mais de uma denominação.
“Eu pergunto: quem fica curado assim?”, questionou o líder da Universal na época. “Andando feito piolho na cabeça dos outros. [...] Você se encaixou bem na igreja 'a', então fique nessa igreja. Não liguem a televisão tentando buscar outros canais que falem de Jesus. Todo mundo fala de Jesus, até o diabo fala de Jesus.”
Mas isso já faz quase uma década. As redes sociais mudaram formas de se relacionar em vários campos, e não seria diferente com a religião. O isolamento social, forte sobretudo em 2020, fortaleceu esse movimento de acessar mensagens variadas a partir de plataformas digitais, em vez de se fixar em apenas um discurso evangelizador, o que era mais comum quando a prática religiosa acontecia in loco.
Hoje, o maior influencer cristão do Brasil nem sequer está numa megaigreja. Só no Instagram, Deive Leonardo, de uma Assembleia de Deus catarinense, agrega 9,5 milhões de seguidores, o triplo de Silas Malafaia e oito vezes o que Edir Macedo tem.
A popularidade de Leonardo na rede responde a uma mescla de autoajuda evangelizadora e momentos família, como o chá revelação que contou com um monomotor para anunciar o sexo do terceiro filho. A fumaça liberada no voo seria azul ou rosa. Rosa foi, é menina.
Dono do canal De Cara Com Thiago, com material gospel, Thiago Medeiros tem seus 253 mil assinantes no YouTube. Ele entrevistou Elaine de Jesus, Mara Lima e várias outras cantoras cristãs do país e, no começo do mês, conversou com participantes do “Culto da Resistência”, reality que reuniu de Mara Maravilha a Mister M com patrocínio do estimulante sexual Levanta Varão.
Começou o empreendimento em março. “Estava sem nada pra fazer e precisava ocupar meu tempo”, conta o youtuber de 31 anos. A pandemia completou um ano quando lançou o primeiro vídeo. “Foi por isso que deu certo. Um canal de cultura gospel virou uma grande distração para quem tava em casa.”
O receio de contágio alterou protocolos em todos os cantos, e alguns ritos tiveram que se adaptar para sobreviver. O apóstolo Estevam lembra dos primeiros meses da Covid-19, de quarentena mais rígida e pouca informação sobre a doença.
“Precisávamos de uma alternativa, não poderíamos deixar de batizar as pessoas”, conta. “Fizemos um outro formato, que foi, assim, uma revolução aos olhos de muitos religiosos.”
O Fuxico Gospel, site com notícias e fofocas sobre a cena evangélica, resumiu a novidade assim, em manchete de agosto de 2020: “Você viu? O batismo no ‘balde’ da Renascer”. A publicação explica como os fiéis não eram submergidos por um pastor, e sim mergulhavam eles próprios a cabeça dentro do recipiente com água. Foi um bafafá dentro do segmento.
Muitas águas ainda vão rolar, mas pastores já antecipam que, passada a crise, alguns tapa-buracos cairão em desuso, como o batismo de balde. Outras soluções vão se integrar a práticas passadas: você vai poder se consultar com o pastor pessoalmente ou pelo WhatsApp, assistir à pregação ao vivo ou remotamente.
Há situações em que o online vai se sobrepor à forma tradicional. O programa de cursos da própria Renascer deve privilegiar o digital e abrir turmas presenciais só “se houver necessidade”, explica o bispo Tenuta.
A pandemia mostrou que esse modelo de negócios faz mais sentido, daí a predileção por workshops a distância de temas como “cura interior” (R$ 100 por dez aulas) e “coaching financeiro” (R$ 200 cada um dos dois módulos com sete aulas).
O zelo higiênico, segundo Tenuta, também deve permanecer mesmo quando a Covid-19 tiver virado um capítulo ruim na nossa geração.
Álcool em gel, por exemplo, daqui em diante será praxe. "E, na Santa Ceia, a gente cortava o pão e distribuía, colocava suquinho [de uva] no copinho plástico.” Agora, o kit que emula a última refeição de Cristo vem em embalagens individuais e descartáveis.
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