Freira acolhe venezuelanas para evitar tráfico de pessoas e exploração sexual em Roraima

165 mulheres e crianças vivem em abrigo enquanto aguardam regularização de documentos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

PACARAIMA (RR)

Quando surgiram os primeiros casos de Covid-19 no Brasil, em março de 2020, o Ministério da Justiça baixou uma portaria que impedia a entrada de venezuelanos pela fronteira terrestre em Roraima, vetava a solicitação de refúgio e deixava os migrantes passíveis de deportação.

À medida em que a pandemia avançava, o fechamento da fronteira se prolongava, levando venezuelanos a entrar irregularmente, pelas chamadas trochas, as rotas clandestinas onde atuam os coiotes.

Em Pacaraima, cidade no estado de Roraima que fica na fronteira da Venezuela, a irmã Ana Maria Silva observava, angustiada, o grande aumento no número de venezuelanos dormindo nas ruas. Eram famílias inteiras debaixo de marquises, porque não podiam solicitar refúgio ao governo brasileiro nem entrar nos abrigos da Operação Acolhida —já que podiam ser deportados sumariamente.

“Era uma emergência, havia mães e bebês abandonados nas ruas, ninguém ajudava, tínhamos que fazer alguma coisa”, diz a religiosa de 60 anos, que pertence à ordem das Irmãs de São José de Chambéry. Ela e outras religiosas começaram a acolher mulheres e crianças, mais vulneráveis a violência, em uma casa, e a distribuir refeições bancadas com doações.

Era importante não deixar as mulheres e adolescentes nas ruas. Desesperadas por um prato de comida, tornavam-se presas fáceis de aliciadores de olho em recrutar jovens para exploração sexual, diz Silva.

Em junho deste ano, foi revogada a portaria que autorizava deportação de venezuelanos, e a fronteira foi reaberta. Com a demanda represada, explodiu o número de venezuelanos dormindo nas ruas de Pacaraima. Segundo levantamento da Organização Internacional para as Migrações (OIM) referente a agosto, há 2.065 migrantes desabrigados, diante de 17 pessoas nessas condições em julho. Pacaraima tem 18 mil habitantes —é como se a cidade de São Paulo tivesse 1,32 milhão de refugiados vivendo nas calçadas.

A irmã Ana Maria —chamada de madre Maria pelos venezuelanos— alugou duas casas maiores, com ajuda da Pastoral do Migrante, e hoje acolhe 165 pessoas (90 crianças e 75 mulheres).

Numa tarde de sábado em setembro, a religiosa se juntou a alguns venezuelanos para tentar consertar os estragos na casa causados por um temporal. O muro de arrimo havia desmoronado.

A freira não desanima facilmente. Já trabalhou em missões na Bahia, em Moçambique e na Bolívia. Em Pacaraima, está acostumada a enfrentar a xenofobia e já foi até presa.

Em março deste ano, equipes da Polícia Federal, ao lado de agentes civis e militares de Roraima invadiram o primeiro abrigo gerido por ela, onde estavam cerca de 55 mulheres e crianças venezuelanas.

Ana Maria foi detida e levada à delegacia para prestar depoimento. “Eu me senti como se fosse a maior traficante de drogas do mundo”, disse na época. “Eles entraram aqui sem ordem judicial e me levaram para a delegacia de camburão. Qual é o meu crime, abrigar grávidas e crianças que estariam na rua?”

A Prefeitura de Pacaraima afirmou apenas que sua equipe da Vigilância Sanitária foi até o abrigo porque havia descumprimento do decreto municipal que proíbe aglomerações durante a pandemia.

Para o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, no entanto, a ação não foi motivada por razões sanitárias. “A forte presença de policiais militares e federais armados, alguns encapuzados, transmite a ideia de que não se tratou de simples inspeção sanitária, mas de ação coordenada com o objetivo de invadir a Casa São José, desativá-la e encaminhar mulheres e crianças para a deportação”, disse o defensor regional de direitos humanos Ronaldo de Almeida Neto.

A freira foi multada em um salário mínimo pela aglomeração. “Imagine quanto leite eu não compraria com esses R$ 1.100?”, diz.

Com a explosão no número de venezuelanos chegando, os abrigos da Operação Acolhida lotaram, e muita gente vem bater à porta do abrigo São José. Na casa, só ficam as mulheres e crianças.

“Nós fazemos sessões de orientação, dizemos para elas tomarem cuidado. Estão desesperadas, aceitam qualquer proposta de trabalho”, diz Ana Maria. “Dizemos a elas que, se oferecerem trabalho muito bem remunerado para filhas adolescentes ou mesmo para elas, não devem aceitar, porque há uma grande probabilidade de ser tráfico de mulheres.”

Algumas pessoas estão há meses na rua esperando a regularização de sua documentação ou a interiorização para outros estados e mal têm dinheiro para se alimentar. Na Casa São José, as mulheres têm cama e três refeições por dia, doadas pelo Exército. Elas ajudam na limpeza e na cozinha. E fazem arepa uma vez por semana, para matar as saudades do prato típico de casa.

A venezuelana Joselin Sanchez, 27, chegou há três meses. “Tive muito medo, no caminho todo, de ser violentada. Muitas mulheres passam por isso”, conta ela, que saiu de Puerto Ordaz, no nordeste da Venezuela, e demorou três dias para chegar à fronteira, pegando caronas em caminhões. Pagou US$ 20 (R$ 110) para um militar venezuelano e R$ 150 para um trochero para cruzar de Santa Elena de Uairén para Pacaraima.

Com medo de ser deportada, pagou outros R$ 200 por um protocolo de refúgio e um CPF falsos. A Polícia Federal percebeu a falsificação, e Joselin agora cumpre pena de serviços comunitários, trabalhando em um posto de saúde, e vive na Casa São José.

Equipes da Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência da ONU para as migrações, vão até a casa para falar com as mulheres sobre prevenção de tráfico de pessoas.

“Eu mesma sempre digo a elas: quando a oferenda é grande, o santo desconfia”, diz a irmã Ana Maria.

Gênero: feminino

Série discute, em oito minidocumentários e reportagens especiais, diferentes aspectos da violência contra a mulher no Brasil

DENUNCIE

Vítimas ou testemunhas podem denunciar o tráfico de pessoas pelo Disque 100 (basta teclar 100 de qualquer telefone fixo ou celular) ou pelo Ligue 180 (basta teclar 180). Os serviços funcionam 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações são gratuitas.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.