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Não há o que comemorar no desfecho do caso Evaldo

Condenação não significa uma mudança de paradigma do papel dos militares na sociedade brasileira

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Renato Sérgio de Lima

Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A condenação de oito dos militares do Exército envolvidos na morte do músico Evaldo Rosa e do catador Luciano Macedo, em abril de 2019, é um passo fundamental. Porém, infelizmente, ela não é suficiente para restaurar a perda de vidas e a dor das famílias e/ou o sentimento de justiça social. A condenação não significa, vale ressaltar, uma mudança de paradigma da Justiça Militar ou do papel das Forças Armadas [e das polícias militares por extensão] na sociedade brasileira, que continuam a ser operados a partir da ideia de tutela da ordem social e subordinação da vida civil.

Os dilemas das relações entre civis e militares continuam intactos e, pior, agravados a partir de um movimento que envolve a radicalização e o fechamento do espaço cívico promovidos por Jair Bolsonaro (sem partido), bem como o reforço histórico do insulamento militar e de suas assimetrias, como aquelas que dispensam tratamento e ritos jurídicos e legais diferentes para praças e oficiais.

Evaldo Rosa dos Santos, músico morto em ação do Exército no Rio
Evaldo Rosa dos Santos, músico morto em ação do Exército no Rio em 2019 - Reprodução/Facebook

A lógica militar é a da hierarquia e, na medida em que o oficial responsável pela unidade responsável pelos tiros que mataram Evaldo e Luciano, foi responsabilizado, os militares a ele subordinados e que dispararam suas armas também foram condenados.

É na chave da segurança e da ordem públicas que é possível compreender o contexto cruel que provocou as mortes de Evaldo e Luciano e que cobra seu preço em vidas; quase sempre vidas negras submetidas à injustiça e à violência, marcas indeléveis da vida social brasileira.

Apenas como ilustração, entre 1992 e 2021 (até meados de setembro), as Forças Armadas foram convocadas 144 vezes para Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), sendo apenas 8 delas já na gestão Bolsonaro. Ou seja, o problema não é apenas de um governo disfuncional e propenso a posições autoritárias e/ou das próprias Forças Armadas.

O Brasil aceita que elas sejam usadas como emplastro para quase todos os problemas do país e, ao fazer isso, não é de estranhar que os militares ocupem tanta centralidade na vida social do país faz anos.

A jornalista Natália Viana, em seu livro “Dano colateral: a intervenção dos militares na segurança pública”, explica bem como as GLO são fundamentais para esse movimento simbiótico entre poder político, polícias e militares que, ao fim e ao cabo, é a causa maior do que aconteceu.

Segundo ela, a inclusão na Constituição de 1988 da possibilidade de atuação das Forças Armadas em caso de GLO, principalmente por pressão do Exército, manteve a ideia de combate a inimigos externos e aos perturbadores da ordem interna.

E, nas representações sociais sobre quem são os inimigos internos que geram medo e insegurança, Evaldo e Luciano encaixavam-se nos perversos estereótipos de sempre dos elementos suspeitos —o que, consequentemente, fez com que os militares do Exército se sentissem autorizados a usar de força letal contra eles. Não houve ordem de parada; não houve "regra de engajamento" ou observância do fato de não existir, naquele momento, nenhuma restrição para a circulação ou para o ir e vir. Na dúvida, a opção foi por atirar.

Mas a questão não reside apenas na conduta individual dos oito militares condenados. Em geral, os três Poderes da República, com seus temores reverenciais diante dos traumas das ditaduras, reproduzem o "puxadinho" normativo criado pelos Constituintes e não constroem novas e racionais bases para a relação entre civis e militares.

O Parlamento, por exemplo, levou quase um ano apenas para designar relator ao Plano Nacional de Defesa, que é o documento balizador sobre o papel dos militares no Brasil. Ao fazer isso, delega aos próprios militares a definição de seus mandatos e atribuições e se omite de suas responsabilidades. Também não avança na análise da PEC que limita a participação de militares da ativa em cargos de natureza civil.

Em suma, as mortes de Evaldo e Luciano não mudam o fato de estarmos diante de um arranjo bastante funcional aos políticos, que não levaram a cabo reformas estruturantes da segurança pública e que, assim, têm a quem recorrer e/ou delegar a responsabilidade (a culpa?) nos momentos de crise. Mas, ao mesmo tempo, é um arranjo que serve como fonte de financiamento e identidade organizacional das Forças Armadas em tempos de ausência de conflitos com outras nações e/ou antagonistas externos.

A condenação dos oito militares cumpre seu papel jurídico institucional e é muito importante enquanto simbolismo, mas efetivamente não transforma as bases sociais e institucionais que permitiram que elas ocorressem. Por isso, não há o que comemorar.

Relembre o caso

7.abr.2019: Militares do Exército disparam mais de 80 tiros contra um carro, com uma família dentro. O músico Evaldo Rosa dos Santos morre na hora
18.abr.2019: Morre o catador de material reciclável Luciano Moraes, ferido no ataque a tiros
21.mai.2019: A viúva de Evaldo, Luciana Nogueira, e mais sete pessoas prestam depoimento
14.out.2021: Após dois anos e meio e quatro adiamentos do julgamento, Justiça Militar condena oito militares pelas duas mortes

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