Descrição de chapéu Folhajus

Preso brasileiro na pandemia teve água por 15 minutos ao dia e 'kit Covid'

Maioria dos estados proibiu visita por meses e restringiu acesso de assistência jurídica

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Rio de Janeiro

A tentativa de frear a contaminação por coronavírus nas prisões brasileiras resultou em presos incomunicáveis por vários meses, isolamento de contaminados por fita no chão ou grades, limite de uso do banheiro ou acesso a água por só 15 minutos e até receita do ineficaz “kit Covid”.

É o que apontam relatórios de inspeções em presídios de alguns estados ao longo da pandemia feitos pelo MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

homens sentados no chão acumulados em cela de presídio
Cela superlotada do corretivo (Chapão), no Acre, em imagem de 2020 - Acervo MNPCT/Divulgação

Em 21 estados, a principal ação foi a proibição das visitas —o que gerou algumas rebeliões. Em ao menos nove estados, houve a suspensão de entrega de alimentos e itens de higiene pelas famílias. Em 23, foram suspensas as atividades educacionais; em 21, a assistência religiosa; em 6, a assistência judiciária; em 13, o trabalho.

A superlotação, por sua vez, não diminuiu, mesmo que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) tenha recomendado que os juízes priorizassem medidas alternativas à prisão. O número de detentos cumprindo pena em regime aberto até aumentou, mas, em número absolutos, cresceu a quantidade de pessoas no regime mais restritivo.

Os relatórios do MNCPT mostraram celas sem ventilação, com fossas abertas e entupidas, proliferação de baratas e ratos e presos bebendo água suja.

No Acre, por exemplo, o local destinado ao tratamento de saúde do Complexo Penitenciário Francisco de Oliveira Conde foi descrito como “extremamente escuro e insalubre”.

A administração diz fazer busca ativa duas vezes ao mês nos pavilhões, com aferição de temperatura e saturação, mas presos relataram não ter o serviço.

presas de roupa branca em cela de costas com mãos na cabeça
Lotação em cela de unidade regional prisional feminina de Luiziânia, Goiás, em imagem de 2020 - Acervo DPE-GO/Divulgação

Na Unidade Penitenciária Feminina do Acre não havia nenhum médico, e as mulheres que estavam com suspeita de Covid eram levadas para uma ala específica. Mas, ao contrário do que se espera, estavam ainda mais superlotadas —espaços projetados para 4 pessoas têm 15.

Uma das mulheres presas, grávida, relatou que foi para o castigo e ficou quase dois meses com detentas que tinham Covid.

'Kit Covid'

No Amapá, a fiscalização no Complexo Penitenciário Masculino, conhecido como Cadeião, apontou que novos detentos eram colocados em quarentena em uma ala que antes da pandemia estava interditada por falta de estrutura —o local não tinha energia, esgoto ou ventilação.

“É incompreensível que as pessoas que mais precisam de cuidados devido à contaminação por Covid fiquem em um dos piores lugares da unidade, enquanto deveriam estar isolados em condições de salubridade, com acesso a água, em ambientes higienizados com colchões e atendimento médico”, diz trecho do relatório.

Por lá, presos tinham recebido receitas para o chamado “kit Covid”, sem comprovação de eficácia contra o vírus. Em uma delas, a indicação era: “5 cápsulas de azitromicina e 2 cápsulas de ivermectina”. No entanto, a unidade não havia fornecido as medicações.

Na unidade feminina também havia a indicação para o “tratamento precoce” dos sintomáticos e assintomáticos, com os mesmos medicamentos.

Para as mulheres, a água potável só existia num único bebedouro fora da ala das celas e dependia da autorização de um agente. “Elas dizem que morrem de sede pedindo por água, que se humilham pedindo por água e que os policiais penais não levam porque têm medo do contágio”, relata o documento.

Mesmo sem eficácia comprovada, o governo Bolsonaro gastou recursos para incentivar o chamado tratamento precoce —Tamiflu (fosfato de oseltamivir), cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina compõem o "kit Covid". Alguns grupos da sociedade civil defendem uso desses medicamentos.

O governo federal gastou R$ 126,5 milhões com esses remédios para destiná-los a pessoas infectadas com a Covid. Foram distribuídos 31 milhões de comprimidos aos estados.

duas camas de cimento desgastadas e sujas em cela
Interior de celas de presos confirmados com Covid-19 em presídio no Amapá, com aspecto deteriorado e insalubre, em imagem de 2020 - Acervo do MNCPT

Em Goiás, na inspeção em novembro, o Centro de Atendimento Socioeducativo de Luziânia, que recebe crianças e adolescentes, não havia acesso livre aos banheiros —que só é liberado duas vezes ao dia, por 15 minutos.

A unidade entrega então um kit ao adolescente com um galão de cinco litros (em geral vasilhames de produtos de limpeza vazios) para ser usado durante o dia como penico.

“A situação se agrava pela falta de ventilação, não permitindo que odores sejam dispersados e aumentando o mau cheiro no interior dos dormitórios, e pela inexistência de água corrente nos quartos, que impossibilita a higienização corporal e do local após fazer as necessidades fisiológicas”, escreveu o órgão.

Na unidade também havia medicamentos vencidos desde 2019 e não havia local para isolar infectados. Um adolescente com Covid foi colocado de forma improvisada no setor administrativo.

Um surto de Covid também foi presenciado na Unidade Regional Prisional Feminina de Luiziânia.

“As presas estavam há 20 dias trancafiadas, adoecidas, com dores, sem condições de se cuidar, passando fome e tomando água da torneira do banheiro. Tudo isso sem poder informar aos familiares que haviam contraído a doença. A única barreira física [entre as infectadas e o resto das presas] é das grades que separam as celas”, diz o relatório.

O banho de sol das 90 mulheres era feito no corredor entre as celas. “Era inevitável o contato entre presas de celas diferentes. Assim é impossível garantir que haja efetivo distanciamento social, que sejam evitadas aglomerações e que o novo coronavírus não circule no interior da carceragem.”

Em nota, o Ministério da Mulher informou que os membros do MNPCT têm independência de atuação, sendo o colegiado vinculado apenas administrativamente ao ministério.

O Instituto de Administração Penitenciária do Amapá, também em nota, disse que os espaços que estavam interditados passaram por reformas e que contam com energia elétrica e sistema sanitário.

Quanto ao 'kit Covid' que teria sido distribuído aos presos, o instituto disse que os medicamentos foram largamente utilizados por não haver tratamentos alternativos quando a pandemia começou. Além disso, o órgão afirmou que as presas dispõem de água potável na unidade feminina.

Já o Instituto de Administração Penitenciária do Acre afirmou que o Complexo Penitenciário de Rio Branco conta com unidade básica de saúde e ala de saúde mental, com busca ativa.

O órgão afirmou também não ter encontrado registros sobre o caso da grávida que teria ficado quase dois meses com presas que tinham Covid. O governo do Distrito Federal não se manifestou.

Colaborou Matheus Rocha, do Rio de Janeiro

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