Em 2 anos, maternidade de Pelotas (RS) reduz pela metade cortes vaginais no parto

Chegada de enfermeiras obstétricas e de nova geração de médicos impulsionou mudanças

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Pelotas (RS)

Referência em parto humanizado no Rio Grande do Sul, a maternidade do Hospital Escola da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) reduziu pela metade o índice de episiotomias (corte no períneo, região entre a vagina e o ânus, para facilitar a passagem do bebê) nos últimos dois anos.

Em 2019, a taxa chegava a 27%. Até setembro deste ano, o índice médio estava em 11%, com pico de 15% em meses anteriores, os menores da história da instituição, que realiza cerca de 120 partos por mês. No Brasil, a taxa atual está estimada em 27%.

Um marco na inflexão dos números foi a chegada das enfermeiras obstétricas a partir de 2016. Hoje elas estão presentes em todos os turnos da maternidade, segundo Patrícia Noguez, chefe da divisão de gestão do cuidado do hospital.

No país todo, quase dobrou a participação das enfermeiras obstétricas nos partos vaginais, entre 2011 e 2017: de 17% para 30%, segundo estudo da Fiocruz em 626 maternidades públicas ligadas à Rede Cegonha.

"Tínhamos um atendimento muito médico centrado, um grupo de médicos muito antigos, as discussões sobre parto humanizado ainda eram muito incipientes. Junto com elas [enfermeiras], chegaram médicos jovens, com outro olhar", explica Noguez.

Segundo Cristiane Becker Neutzling, chefe da divisão médica do hospital, essas mudanças trouxeram melhoria à assistência ao parto. "Práticas obstétricas que antes eram aceitas [como a episiotomia e a manobra de Kristeller], hoje não são mais."

Gênero: feminino

Série discute, em oito minidocumentários e reportagens especiais, diferentes aspectos da violência contra a mulher no Brasil

Ela afirma que todos os profissionais passaram por uma formação obstétrica que tem reconhecimento internacional, baseada nas atuais evidências científicas, para haver uma homogeneidade de condutas.

Entraves ainda existem nessa interação entre médicos e enfermeiras na obstetrícia, mas vêm sendo discutidos em conjunto. "A gente nota muito a enfermeira obstétrica trabalhando no pré-parto. Mas, no período expulsivo, entra o médico. Talvez ainda falte confiança de ambas as partes", diz Jenifer Figueroa, chefe da unidade de atenção da saúde da mulher do hospital-escola.

Sala adaptada para parto humanizado na maternidade Balbina Mestrinho, em Manaus - Mathilde Missioneiro - 22.out.21/Folhapress

Outros profissionais, como os da educação física, também foram incorporados no trabalho de pré parto. A mulher pode escolher a posição mais confortável para parir. Há banquetas para dar luz sentada se esse for o desejo. Recursos como música, aromaterapia, bolas e escada para relaxar a musculatura lombar também estão disponíveis.

"Vim para cá porque a minha gestação era de risco, tive diabetes gestacional. Cheguei com 4 cm de dilatação e depois de alguns exercícios na sala de parto, já estava com 9 cm. O parto foi bem tranquilo, emocionante, do jeito que eu queria", conta a repositora de mercadorias Tibele da Luz Dias, 32, que deu a luz a Isaac em 12 de outubro.

Outra iniciativa do hospital é permitir que a gestante seja assistida por sua doula de confiança. A profissional precisa se cadastrar na instituição e terá uma carteirinha de identificação. Durante a pandemia, o trabalho ficou suspenso para evitar aglomeração, mas será retomado.

O próximo passo da instituição será a oferta de analgesia no trabalho de parto para todas as gestantes do SUS. Os profissionais estão passando por treinamento.

Mesmo com essa mudança na cultura, o hospital foi cenário em 2020 de um caso policial, após uma médica obstetra ser agredida pelo marido de uma paciente que a acusou de violência obstétrica.

Para Patrícia Noguez, o episódio serviu para alertar sobre falhas na comunicação. "Nossa comunicação com aquela mulher em trabalho de parto tem que ser mais efetiva, precisa acontecer de uma forma melhor. É um trabalho gradativo, cotidiano, de falar com as pessoas, de chamar para a discussão."

Por exemplo: a gestante chega em trabalho de parto e é atendida pela equipe plantonista. No dia seguinte, com a mudança do turno, ela passa a ser atendida por um outro médico, outros residentes.

"Tudo isso são obstáculos que atrapalham uma conversa franca a respeito do parto, tipo ‘olha, vamos respeitar a sua vontade, mas talvez chegue um momento em que será preciso uma intervenção. Você está de acordo?’, diz.

A busca por uma linguagem clara e didática é um outro desafio na comunicação entre médico e paciente. "Falar a informação de maneira que a paciente entenda. Muitas vezes a parturiente não está no seu juízo normal, o desconforto é grande, é difícil a comunicação."

Segundo Neutzling, há gestantes que chegam com planos de parto, mas que sequer entendem o conteúdo do que está escrito. "Já peguei paciente que disse: ‘eu não quero que escutem o meu bebê’ durante o trabalho de parto’. Aí a gente tem que explicar que isso precisa ser feito. Às vezes estão abertas para isso, outras não", afirma.

Outra situação que ainda gera conflitos é a necessidade de episiotomia, que não deve ser feita de rotina, mas, em alguns momentos, será necessária caso ocorra uma dificuldade (distocia) durante o parto, explica a médica. "A gente precisa ter tempo com essa paciente para explicar isso tudo. O ideal seria que essas discussões todas tivessem ocorrido no pré-natal."

Segundo pesquisa da Fiocruz, a falta de escuta das mulheres é um problema recorrente em maternidades de todo o país. Menos da metade das instituições oferece, por exemplo, serviços de ouvidoria.

DENUNCIE

Episódios de violência obstétrica podem ser registrados em boletins de ocorrência nas delegacias de polícia.

Também é possível denunciar pelo Disque 136, se o parto ocorreu em maternidade do SUS, ou pelo Disque 180, que recebe todos os tipos de denúncia de violência contra a mulher.

O serviço está disponível 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.

A ligação é gratuita.

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