Meninas-prodígios trocam brinquedos pelo xadrez no litoral de SP

Elisa Feng, 8, foi campeã nacional de xadrez escolar na categoria sub-9

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Santos

Não há brinquedos espalhados pela casa de Feng Yunyou, 54, e Xiaochang Wu, 46, casal de chineses que vive há cerca de 15 anos em Santos, no litoral paulista.

Pais de duas meninas, Elisa Feng, 8, e Sophia Feng, 11, eles contam encabulados que "brinquedos são caros" e que as filhas não se interessam por eles.

Basta entrar no local onde vivem para entender o maior motivo. No meio da sala há uma mesa de bar, duas cadeiras e um tabuleiro de xadrez. É visível, também, um livro apoiado sobre um móvel, de Garry Kasparov, famoso enxadrista russo, alvo mais recente de leitura das irmãs.

A garota Elisa Feng, 8, segura uma peça de xadrez e aparece em segundo plano, atrás de um tabuleiro com o jogo em andamento
Retrato de Elisa Feng, 8, na casa onde mora em Santos (SP) - Eduardo Anizelli/Folhapress

"Elas só pensam em xadrez. Para mim é só um jogo muito rápido, não consigo compreender", diz a mãe à Folha.

Elisa é vista como um prodígio no esporte. Ela conquistou recentemente o título nacional de xadrez escolar na categoria sub-9.

O campeonato é reconhecido pela CBX (Confederação Brasileira de Xadrez) e pela Fide (Federação Internacional de Xadrez). Antes, ela já havia vencido o paulista por três vezes.

"Queremos ser grandes mestres internacionais", dizem em perfeita sincronia as irmãs. "E eu quero ser como a Beth", completa Sophia, também campeã paulista.

Ele se refere a Beth Harmon, personagem interpretada pela americana Anya Taylor-Joy em "O Gambito da Rainha", produção que bateu recordes na Netflix.

A personagem é uma obra de ficção, baseada em livro homônimo ao da série, publicado pelo escritor americano Walter Trevis (1928-1984) em 1983, mas confundiu espectadores sobre a existência real ou fictícia dela.

Já o título de grande mestre representa um atestado de que o jogador atingiu o nível mais elevado da modalidade. O primeiro brasileiro a conquistá-lo foi Henrique Costa Mecking, o Mequinho, em 1972, com 19 anos.

O caminho para chegar lá é longo e depende de muito estudo. As irmãs parecem saber disso. "Ficamos repassando partidas juntas, estudando as aberturas dos grandes mestres. Jogamos também online, quando minha mãe permite", diz Sophia.

Segundo os pais, o uso de celular em casa é restrito. As crianças não têm aparelhos e podem ficar, no máximo, 30 minutos utilizando o celular da mãe por dia.

Elisa aprendeu xadrez com a irmã mais velha, com apenas quatro anos. As duas tiveram como incentivador e mestre o professor Wlamir Pestana Ursini, 55, responsável por introduzir Sophia em um projeto de xadrez na biblioteca da escola onde estudava.

"Desde 2002 trabalho com xadrez escolar. Dou aulas de matemática e ampliei o meu projeto de xadrez gratuito na garagem da casa da minha mãe. Hoje, as aulas são na garagem da minha casa para crianças", conta Ursini.

O início das irmãs no xadrez não foi tarefa fácil. Reticentes por não dominarem o idioma, os pais só permitiam que tivessem aulas ou disputassem campeonatos dentro da escola.

"Foi difícil convencê-los. No começo, elas perderam muitas competições, não queriam de jeito algum, mas depois viram que o talento delas era excepcional. Fomos ganhando confiança aos poucos", diz o professor.

Para disputar o Brasileiro, Elisa teve a sua inscrição de R$ 130 paga pelo professor e foi ajudada no transporte, junto com a mãe. Elas conseguiram carona com uma amiga que iria participar.

"Eles não queriam deixá-la participar do campeonato, mas ouviram a minha opinião. A mais velha precisou ceder lugar para a irmã, não conseguiriam ir as duas pelos custos", conta o tio das crianças, Vitor Wu, que mora no Brasil há mais tempo e dá suporte à família.

O campeonato aconteceu na cidade de Caxambu, no interior de Minas Gerais, a 371 km de distância de Santos. Foram três dias de competição, com seis partidas que duraram pouco mais de uma hora cada uma.

A vitória rendeu a Elisa classificação para o sul-americano, mas ainda é improvável que consiga disputar o torneio. "Será difícil ir sem um patrocínio, falta isso a elas", cita Wlamir.

Sophia estuda hoje em uma escola particular em Santos, Fundação Lusíadas, com bolsa integral até o nono ano do ensino fundamental. Ambas receberam uma proposta da Escola Augusto Laranja, tradicional na modalidade, por bolsas integrais até o fim dos estudos.

"Conversaram comigo e eu fiquei de conversar com os pais. Eles estão contentes no momento, mas, por enquanto, é inviável porque têm muitas dificuldades de comunicação e precisariam largar o trabalho aqui", diz o tio.

Os pais são donos de um comércio, um pequeno bar. Muitas vezes, ao saírem da escola, elas passam algumas horas no local, jantam e jogam partidas de xadrez.

O projeto de Wlamir já formou 11 campeões brasileiros e diversos campeões paulistas. O principal nome é o de Larissa Yuki Ichimura Gonçalves Barbosa, 24, uma das mestres internacionais brasileiras.

"Ambas são muito talentosas e conseguem prever muito o que o outro está fazendo. A Elisa tem a questão da criatividade a mais. Podem ir muito longe."

Sophia e Elisa iniciaram também acompanhamento com um jogador profissional, indicado por Wlamir, para que possam evoluir no esporte.

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