Descrição de chapéu Rio de Janeiro Folhajus

Polícia mata muito mais quando age por vingança, diz especialista

Assassinato de agente eleva em 350% as chances de um civil ser morto pela polícia no dia seguinte

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Rio de Janeiro

Quando um policial é morto em serviço, as chances de um civil ser morto pela polícia no dia seguinte aumentam em 350%. Nos sete dias posteriores, em 125%. No mesmo dia, em 1.150%.

A conclusão da dissertação de mestrado da pesquisadora Terine Husek, apresentada na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 2017, traduz em números um mecanismo de represália já observado há décadas por especialistas da segurança pública.

Na manhã desta segunda-feira (22), moradores do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio, retiraram de um manguezal ao menos oito corpos após a Polícia Militar efetuar operação em uma área próxima no dia anterior. A corporação diz ter entrado em confronto com suspeitos.

Moradores do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), recolhem oito corpos em uma área de manguezal após operação da PM - Jose Lucena/Futura Press/Folhapress

Coordenador do LAV (Laboratório de Análise da Violência) da Uerj, o pesquisador Ignacio Cano afirma que existem duas razões para que a polícia mate em represália à morte de um policial.

Primeiro, uma sede de vingança pessoal, motivada pela raiva diante da morte de um colega. Segundo, de um ponto de vista institucional da corporação, a ideia de que é preciso responder de forma rápida para não permitir o fortalecimento dos grupos criminosos.

"Na lógica de guerra, a resposta nunca é de investigação, sempre de combate (...) Deve ter resposta sim, mas justamente uma investigação rápida e maciça para descobrir quem matou [o policial] e poder prender", diz.

O professor Daniel Hirata, coordenador do Geni-UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), diz que a letalidade de cada ação policial aumenta quando um agente é morto em serviço.

"A vingança é a motivação mais letal no que diz respeito às ações policiais. Elas normalmente terminam com cerca de quatro vezes mais mortos do que uma operação motivada por um mandado de busca e apreensão, por exemplo", afirma.

O especialista diz que operações com perfil de vingança acontecem porque o poder público não fiscaliza a atividade policial como deveria. Segundo ele, não há informações oficiais sobre as operações e as normas que regulam ações em comunidades não são respeitadas.

"São forças policiais fora de controle, o que faz com que o uso da força seja arbitrário. Isso é próprio dos regimes autoritários. Em democracias, o uso da força é regulado", afirma o pesquisador, acrescentando que controlar o uso da força protege a população e os bons policiais.

"É fora de esquadro imaginar que policiais se acham autorizados a realizar uma vingança institucional, como se tivessem as mesmas características de grupos criminosos. Esses grupos cometem vingança, mas o Estado não pode fazer isso."

Hirata salienta que ações motivadas por vingança são ilegais e não estão previstas nas instruções normativas que regulam as operações no Rio. "Eu espero que a operação que aconteceu no Salgueiro seja rigorosamente supervisionada pelo Ministério Público e que se tomem as devidas providências pelas autoridades. É inaceitável que a gente conviva com esse tipo de situação."

O clima já estava tenso na comunidade desde sábado (20), quando o policial militar Leandro da Silva foi morto a tiros durante um patrulhamento. No domingo (21), o Bope (Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio) realizou uma operação na comunidade após receber informações de que uma das pessoas que atacaram o agente estaria ferida na região.

A polícia diz que, durante a operação, os agentes foram atacados em uma área de mangue, na qual ocorreu troca de tiros com suspeitos. Os corpos encontrados nesta segunda (22) por moradores estava perto da área em que houve esse confronto. ​

Vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Rio, Nadine Borges afirma que os moradores relatam que os corpos apresentam sinais de tortura e que a ação foi uma chacina.

"O que nós sabemos dos moradores é que há muita tensão e muito medo. Ao que tudo indica, foi uma represália à morte do policial no sábado. É um caso muito grave", diz ela.

Coordenador do LAV, Ignacio Cano afirma que a prática de tortura é mais rara nas operações por ir de encontro à narrativa de confronto e, portanto, aumentar as chances de que os policiais autores das mortes sejam condenados.

"Se você entra numa operação policial, procura os caras, troca tiros, mata cinco ou dez, a probabilidade de ser condenado é muito pequena. A tortura em geral inviabiliza a lógica do confronto. A plausibilidade da narrativa é infinitamente menor. O policial que faz isso arrisca muito mais em termos de sanção do que aquele que entra, atira e mata", diz.

Uma das operações mais violentas dos últimos anos, realizada pela Polícia Militar no morro do Fallet, em fevereiro de 2019, ficou marcada por denúncias de mutilação e de assassinato de pessoas já rendidas. Ainda assim, o Ministério Público do Rio de Janeiro pediu que as acusações de homicídio contra os policiais fossem arquivadas.

Reportagem da Folha mostrou que, entre 2015 e 2019, apenas 2,5% das investigações que tramitaram no extinto Gaesp (Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública) do MP-RJ a respeito de mortes por intervenção policial resultaram em denúncia pelo crime de homicídio.

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