Descrição de chapéu Folhajus STF

Prisão por furto de xampu, botijão, chocolate e miojo se arrasta para cortes superiores

Defensores públicos de São Paulo tiveram mais de 20 casos nessa situação durante a pandemia

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São Paulo

Quatro frascos de xampu: um mês no cárcere. Seis garrafas de suco de laranja: condenação a dois anos de prisão em regime fechado. Houve ainda quem ficasse detido, no meio de uma pandemia que coalhou as prisões brasileiras com Covid-19, por furtar aparelho de barbear, caixa de bombom e botijão de gás.

Defensores públicos de São Paulo tiveram que recorrer a tribunais superiores para reverter, nestes quase dois anos de crise sanitária, ao menos 23 condenações que se encaixam no chamado "princípio da insignificância" —quando a Justiça brasileira não vê por que punir uma conduta com baixíssimo impacto na sociedade.

O caso mais notório —o que viralizou— aconteceu no fim de setembro. Tudo por causa de produtos que somavam R$ 21,69, surrupiados de um mercado na Vila Mariana (zona sul paulistana). "Eu só estava com muita fome e queria muito comer um miojo", justificou a mãe de cinco filhos que passou 14 dias presa depois de afanar duas Coca-Colas, dois macarrões instantâneos e um pacotinho de suco em pó.

Grades de proteção cercam a estátua da justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília - Pedro Ladeira - 5.set.2013/Folhapress

Duas instâncias da Justiça paulista viram na moradora de rua com histórico de vício em drogas uma criminosa digna de cárcere. A mulher de 41 anos só foi liberada após o STJ (Superior Tribunal de Justiça) aceitar o argumento da Defensoria Pública de que seu delito era irrisório demais para uma punição tão grave.

Episódios afins têm desfecho parecido em todo o país. Recentemente, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes revogou a prisão de outra mãe, esta de um menino de cinco anos. A diarista de 34 anos ficou mais de cem dias confinada sob acusação de consumir água da rede pública sem pagar por ela.

Pesou contra ela a reincidência do delito e a reação dela ao funcionário da empresa de saneamento que detectou a gambiarra. "Exaltou-se, esboçou agressividade, proferiu palavras de baixo calão: ‘Seus policiais de merda, seus vagabundos, vão procurar bandido’", diz o boletim de ocorrência, revelado pela BBC Brasil. Ela foi presa na frente do filho.

Promotores dispostos a pedir penas restritivas em situações similares, e juízes que concordem com eles, não são novidade para as Defensorias do país, instituições do Estado que fornecem profissionais para dar assistência jurídica aos cidadãos que não podem bancar uma. Um recurso novo, porém, tem sido justamente a carta do coronavírus, citada em várias peças de defesa.

A rigor, o princípio da insignificância deveria se sustentar por si só, independentemente do quadro sanitário, diz o defensor Glauco Mazetto, assessor criminal da instituição paulista. Mas o quadro vem sensibilizando a magistratura, daí virar um expediente a mais. "Nesse aspecto, a pandemia conta muito mais como reforço argumentativo político do que jurídico", ele afirma.

Afinal, as pessoas têm fome, a oferta de emprego encolheu, e trancafiar alguém numa cela com outros prisioneiros tem um potencial custo à saúde pública.

Mas quais atos são tão insignificantes que podem descartar punição aos olhos da Justiça brasileira?

O princípio da insignificância, também conhecido como princípio da bagatela, é usado para afastar o enquadramento penal de uma transgressão cometida, explica Vera Chemin, advogada constitucionalista e mestre em direito público pela Fundação Getúlio Vargas. "Nesse caso, aquele delito não é mais visto como crime, uma vez que sua consequência ou impacto é irrelevante do ponto de vista penal."

Você não vai encontrar essa percepção jurídica no conjunto de leis brasileiras. O que existe é a jurisprudência em torno do tema.

Digamos que alguém furta um sabonete do mercado, exemplifica Chemin. Não deixa de ser uma malfeitoria do ponto de vista formal, mas se os tribunais entenderem que as consequências dessa atitude são inexpressivas, aí optam por aplicar o princípio da insignificância.

"O STF parte de alguns requisitos para considerar um determinado delito como irrelevante", pondera a constitucionalista. "São eles: o ato não apresenta ameaça ou perigo à sociedade; a conduta não é ofensiva ou pouco reprovável, além de uma suposta lesão ser inexpressiva."

Há critérios objetivos para evocar a insignificância, segundo o defensor Mazetto. Critério comum nas instâncias mais altas: o valor dos bens subtraídos não pode ultrapassar 10% do salário mínimo federal, o que hoje daria R$ 110.

Claro que a análise vai de caso a caso. "Imagine que alguém pegou uma peça de picanha que vale R$ 300. Mas a pessoa foi pega com a peça dentro do mercado, e a peça foi restituída, não foi violada, pode ser colocada à venda de novo. Qual foi a lesão jurídica causada ao mercado?"

A ausência de ônus monetário nem sempre é suficiente. Em 2011, ministros do Supremo negaram um habeas corpus proposto por um defensor com base na suposta irrelevância de um furto. O valor sentimental, nesse caso, pesou mais.

A vítima: Milton Nascimento, que teve um disco de ouro (sem grande valor material, mas símbolo afetivo de 100 mil discos vendidos) levado da casa de sua família em Três Pontas (MG).

Essa, contudo, é uma excepcionalidade. Em geral, chegam às cortes superiores casos em que o princípio da insignificância é ignorado por instâncias iniciais. A reincidência do réu costuma influenciar a decisão dos juízes.

Foi o que aconteceu com um homem que tentou furtar três pacotes de batata frita em Santos (SP), que juntos custavam R$ 54. O caso precisou chegar ao STJ, a terceira instância, para a prisão ser anulada.

"A despeito de o paciente ser reincidente e portador de maus antecedentes, a natureza dos bens (gênero alimentício), seu reduzido valor, bem como a circunstância de ser a vítima um estabelecimento comercial (com capacidade financeira mais expressiva) autorizam a conclusão de que o grau de reprovabilidade da conduta do paciente é mínimo, não tendo havido dano social relevante", afirmou a ministra Laurita Vaz, relatora do pedido de soltura apresentado pela Defensoria.

Mas muitos magistrados sequer precisam de condenações prévias para se negar a absolver uma pessoa, diz Mazetto. Basta ela estar respondendo a outros processos paralelos.

Mesmo o andar de cima da Justiça pode divergir sobre esse tópico. Em outubro, a ministra Rosa Weber, do STF, derrubou uma deliberação do STJ, corte um degrau abaixo que havia negado um habeas corpus em favor de um homem que furtou um fardo de arroz com seis pacotes de cinco quilos cada. Tudo valia R$ 61,35.

A Defensoria mineira apontou que "o paciente, muito embora possua processos em curso, é primário". Todos os tribunais anteriores ao Supremo enfatizaram acusações preexistentes de furto ao repelir a absolvição do réu, condenado a dois anos de reclusão.

Weber discordou. Para a ministra, deveria prevalecer a jurisprudência do STF, "pois evidentes" elementos como "a ausência de periculosidade social da ação" (não houve ameaça) e "a inexpressividade da lesão jurídica provocada" (o arroz foi devolvido).

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